segunda-feira, 27 de dezembro de 2010



O Natal se aventura à meia-noite com o som que vem do choro do Menino Jesus.
O som de passos que caminham em direção ao Salvador trazendo-lhe oferendas.
Os Três Reis Magos presenteiam como graça, agradecimento.
É o sinal de devoção àquele que eles acreditam trazer em si a soma da união, dos bons valores, do amor à vida que se espalha em cada grão de areia, ou gota d’água.
É o som surdo duma alegria que se vê no rosto de Maria e se faz na contemplação de José.
É o som dos animais que permeiam a casa escolhida para nascer o Menino, na simples manjedoura que lhe abriga tal qual sua sabedoria perene.
Muita antes do som, há o barulho.
Muito antes de castelos, palácios, riquezas, há manjedouras.
Por isso muito antes da neve, dos sinos, das luzes e da barba branca que acolhe o corpo vermelho de um senhor bondoso e carinhoso para com as crianças há a criação da fé ao homem, ao próximo, ao suplício eterno pela caridade pura e desprovida de interesses.
Pelo viver em ver o outro viver bem.
E alegrar-se pelo outro como a si.
Então haverá o som de harpas tocadas pelos anjos, tamborins tocados pelos sambistas e tambores tocados pelos reis magos do axé.
Pois lá no início houve o deslumbramento provocado pelo choro do Menino Jesus e o sorriso cândido dos que permaneceram acortinados nele.
A isso, comemora-se o Natal.

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/12/2010.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010




Noel de Medeiros Rosa, ou simplesmente Noel Rosa, completaria 100 anos de vida em 2010.
O poeta da Vila, como ficou conhecido por ter nascido, vivido e consagrado o bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, nasceu no dia 11 de dezembro de 1910, e faleceu no dia 4 de maio de 1937, vítima de uma tuberculose.
Noel Rosa foi um poeta jovem, que nos deixou antes de completar 27 anos.
Um poeta jovem que nos presenteou com todos os tipos de cantos.
O canto alegre, o canto triste, o canto que enfeitiçou a Vila e até hoje é sentido. O canto do samba rindo que canta a dama da Lapa e toda a dor que existe. Todo o amor que existe.



“Batuque é um privilégio
Ninguém aprende samba no colégio
Sambar é chorar de alegria
É sorrir de nostalgia
Dentro da melodia”








Para Noel, o samba foi uma espécie de melhor amigo.
Foi seu sentimento na voz da amiga Aracy de Almeida.
Um samba apaixonado, um samba de protesto.
Um samba que se equilibra na corda-bamba do amor que perde a batalha, mas não a guerra.
Um samba que é o amor em verso.



“A estrela d’alva
No céu desponta
E a lua anda tonta
Com tamanho esplendor
E as pastorinhas
Pra consolo da lua
Vão cantando na rua
Lindos versos de amor”


Noel Rosa é a conversa gostosa no botequim da esquina.
A dúvida na hora de escolher a melhor roupa para a festa fina.
O deboche em cima da Ilustre Visita que não poderia ser mais fingida e a disputa bem humorada e saudável com Wilson Batista.
Entre bebidas e cigarros, amores e seus altos e baixos, Noel Rosa é o poeta que coloca o samba no lugar mais alto da música popular brasileira.



“Quem é você que não sabe o que diz?
Meu Deus do Céu, que palpite infeliz!
Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira
Oswaldo Cruz e Matriz
Que sempre souberam muito bem
Que a Vila não quer abafar ninguém
Só quer mostrar que faz samba também”








Pra quê mentir?
Se o samba sem Noel Rosa não seria o que é.
Noel Rosa é o Pierrô apaixonado, o malandro magoado.
É o povo a perguntar com maldade pela tal honestidade.
É o malandro de terno branco que une o morro ao asfalto.
Bebendo a sua cascatinha, fazendo batuque, choro e marchinha.
E ás vezes chorando por Ceci.



“Pra quê mentir?
Se tu ainda não tens esse dom de saber iludir?
Pra quê mentir?
Se não há necessidade de me trair?”


Noel faz do samba sua filosofia.
Sua voz ecoa pelos três apitos da fábrica de tecidos que buscam encontrar enfim a Dama do Cabaré.
Um palpite feliz é ouvir Noel Rosa, filósofo do samba!

“Quando o apito
Da fábrica de tecidos
Vem ferir os meus ouvidos
Eu me lembro de você
Mas você anda sem dúvidas bem zangada
E está interessada
Em fingir que não me vê”




Noel Rosa pega o samba no berço, carrega no colo e o leva ao seu lugar de merecimento.
Porque o samba não tem tradução no idioma francês.
O samba só tem tradução no idioma simples e refinado de Noel, poeta da sabedoria que morreu menino.
Poeta da sabedoria que fez do samba seu refrão mais bonito.
O último desejo é ouvir Noel Rosa, sambista de todos os desejos.



“Nosso amor que eu não esqueço
E que teve o seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato e sem bilhete
Sem luar, sem violão”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 12/12/2010.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010




O rosto negro iluminando um sorriso branco são as primeiras armas que o General da Banda dispõe. Sem firulas ele ameaça com voz despojada de brasileirismo que cedo perdeu os pais e num rompante alcançou degrau artístico. Por ordenamento sugestivo do Capitão Furtado, radialista da Difusora de São Paulo, virou Blecaute e lançou para o carnaval sucessos do povo: Maria Candelária, Pedreiro Waldemar, Maria Escandalosa, Natal das crianças. Todas emergiram com letra maiúscula de sua garganta privilegiada. Otávio Henrique de Oliveira não foi nada mais que um cantor e compositor esquecido pela grife da música brasileira, mas alavancado às alturas em sua época áurea e definitiva.



Elegantemente trajando a farda que lhe foi ofertada, Blecaute se investe de alamares e dragonas para desfilar com alegria expressiva ao lado do Rei Momo, Rainha Moma, suas Princesas e Cidadão Samba. O ponto de macumba é sua criação refletida na fantasia que usa. Moldada por Sátiro de Melo, Tancredo Silva e José Alcides, começou a persegui-lo na rua. Até que ele foi certa noite em direção à batucada: “Chegou o General da Banda, ê! ê!, chegou o General da banda, ê! á!”. Em 1949, o pico de energia nas ruas chamava-se Blecaute.



Pedreiro Waldemar

Blecaute elogiava sem disfarces o querido amigo Wilson Batista, “um mulato frajola, muito elegante, alegre, torcia pro Flamengo, por sinal, um garoto bacana à beça”. Foi ele, ao lado de Roberto Martins, o autor da marchinha de 1949 que elevou o garoto de Espírito Santo do Pinhal, no interior de São Paulo, ao primeiro trampolim na capital farrista. Durante a festa mais comemorada do ano havia unanimidade em saltitar a melodia espessa da dura vida do Pedreiro Waldemar, que “faz tanta casa e não tem casa pra morar, leva a marmita embrulhada no jornal, se tem almoço nem sempre tem jantar, (...) constrói o edifício e depois não pode entrar”. Você conhece?



Maria Candelária

Grande Otelo era o inspetor de gafieira que exigia: “dança direito ou desce!”, no primeiro filme que Blecaute atuou, ainda como figurante, “Tristezas não pagam dívidas”. Depois, seguiu carreira bem sucedida no cinema, participando de 20 filmes, num deles, intitulado “Tudo Azul”, de Moacyr Fenelon, entoava a sátira “Maria Candelária”, calcada na conhecida fórmula de abuso por parte de algumas funcionárias públicas. Essas costumavam esperar ônibus no ponto que dá sobrenome à protagonista. Se bem que elas preferiam mesmo andar de pára-quedas, como sugerem Klécius Caldas e Armando Cavalcanti.

Maria Escandalosa

O cantor Nuno Roland contracenou com Blecaute e Marlene no espetáculo Carnavália, encenado no Rio de Janeiro em 1968. Antes ele havia sido o responsável por apresentar o carnavalesco General à dupla Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, nos corredores da Rádio Nacional. Dessa confraternização caiu na folia a desinibida “Maria Escandalosa”, que em 1955 Blecaute cantava rindo e dançando com os braços, como era de costume, mais um sucesso.



Piada de Salão

As dificuldades de fala eram tiradas de letra por um descontraído Blecaute que saboreava a gagueira do personagem com irredutível euforia. Ele que havia sido engraxate e entregador de jornais depois de ficar órfão aos 6 anos e antes de realizar o sonho de cantoria, era especialista em vencer barreiras. E por isso mesmo dava tom especialmente delicioso à “Piada de Salão”, da dupla que o municiava, Klécius Caldas e Armando Cavalcanti, no ano de 1954: “É ou não é, piada de salão, se acham que não é, então não conto não...”

Papai Adão

Blecaute colecionou muitos admiradores que adoravam seu jeito afável e de bem com a vida, esbanjando largo sorriso. Além disso, era conhecido também pela elegância, tanto dos passos como das vestimentas. A cronista Eneida dizia: “Olha que elegância de porte e que charme de sorriso.” Mas o traço mais marcante de Blecaute sem dúvida nenhuma era a espontânea simpatia, contida em sua maneira sinuosa de cantar ditados tão populares: “Papai Adão, Papai Adão já foi o tal, hoje é Eva quem manobra, e a culpada foi a cobra”. A divertida brincadeira sobre as relações conjugais é mais um exemplo da bem sucedida comunhão entre Blecaute e Klécius Caldas & Armando Cavalcanti.



Natal das crianças

“Natal das crianças” comemora a bonita inocência que Blecaute guarda em seu canto suave. É com singeleza que ele compõe a harmonia e imita os sinos que aguardam Papai Noel. Na música de 1955, que tornou-se clássica e recebeu mais de 40 regravações, dentre elas a de Carlos Galhardo, a celebração é agraciada com o clima de bondade que merece ter, sob a batuta do espaçoso sorriso branco que ocupa a cara inteira dum negro orgulhoso de simpatia e samba. Blecaute não é Blecaute só no nome artístico. É também na união gostosa de música e sabedoria em uma única risada ao povo. Uma risada sua já é suficiente. Mas ele não se cansa de distribuí-las, como presentes. Ao som de palmas e vibrantes marchinhas, marche General, a banda é sua!



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 05/12/2010.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010




Não à toa chamam Mário Lago poeta. Além da função literária, ele desempenhava os serviços de ator, compositor, radialista e teatrólogo. Tudo com poesia. Sem mencionar que por desvios dessa vida que a gente não imagina, formou-se em advocacia, embora procurasse algumas vezes, esconder o diploma adquirido. Fonte de suas escritas eram as mulheres, Auroras e Amélias. E também o fracasso, condição existencial do homem. Por fim, nada além, Mário Lago somente poeta.




Ai, que saudades da Amélia

Mário Lago disse a vida inteira que Amélia não era mulher submissa, mas solidária, companheira, amiga nas horas difíceis. As feministas não o perdoaram por tais liberdades poéticas concedidas: “ás vezes passava fome ao meu lado, e achava bonito não ter o que comer”. A beleza do sofrimento retratada por Mário Lago, versos, e Ataulfo Alves, música, sobre a mulher idealizada, sinalizavam na realidade a dependência da atual esposa, segundo o próprio poeta: “Você não sabe o que é consciência, não vê que eu sou um pobre rapaz, você só pensa em luxo e riqueza, tudo que você vê você quer.” Lançada no carnaval de 1942, dividiu a preferência do público com “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e o prêmio teve que ser dividido. No entanto, “Amélia” penou para conquistar garantida assumidade na música brasileira. Foi recusada por todos os cantores as quais se ofereceu, até que o próprio Ataulfo Alves resolveu gravá-la, com a companhia de Jacob do Bandolim tocando a introdução. A trajetória da protagonista não foi das mais suaves, mas ao final, estava consagrada. E olha que Amélia existiu de verdade.



Nada além

Custódio Mesquita e Mário Lago resumiram uma relação sublime na música brasileira. A alta costura dos versos do poeta associada ao esmero da melodia do compositor especificaram o amor em sua face menos dolorosa e possivelmente mais assumida, a doce ilusão. Docemente, Orlando Silva gravou o fox “Nada além”, em 1938, como era de sua categoria, acrescentando murmúrios chorosos ao final da canção. Nada mais bonito: “Nada além, nada além de uma ilusão, chega bem, que é demais para o meu coração, acreditando em tudo que o amor mentindo sempre diz, eu vou vivendo assim feliz, na ilusão de ser feliz.”



Aurora

Antes de Amélia, houve na vida de Mário Lago uma outra mulher. Sorte que ela não fosse sincera, pois inspirou-lhe belas alfinetadas na sabida moça. Carmen Miranda alçou ao sucesso as qualidadades de Aurora, que foi pela primeira vez cantada pela dupla Joel e Gaúcho. No carnaval de 1941, a marchinha de Roberto Roberti e Mário Lago alcançou glórias em terras brasileiras, inglesas e americanas, tornando-se inclusive, tema de filme estrangeiro.

Atire a primeira pedra

Foi ao Café Nice que Mário Lago se dirigiu para comemorar com Ataulfo Alves o estouro de “Atire a primeira pedra”, samba de amor custoso escrito pelos dois compositores. O famoso reduto da boêmia carioca abrigava a música como que por espontânea ligação religiosa. E eram versos religiosos que valorizavam o sucesso da composição em ritmo de penitência. Com a interpretação de Orlando Silva em 1944, foi lançada por Emilinha Borba no filme “Tristezas não pagam dívidas”. A música desfilou na boca do povo com tamanha empolgação no carnaval daquele ano que de acordo com Mário Lago foi a única vez que viu o amigo Ataulfo de “pilequinho”.



Fracasso

Herdada a música de seus avós e de seu pai, Mário Lago foi instruído pela mãe a seguir a carreira de Vinicius de Moraes. Não que ele fosse poeta, compositor, artista, “profissões de fome”, segundo o pai que as vira de perto. Queriam que fosse diplomata e usasse casaca, perfeita para seu porte alto e magro. Mas Mário Lago contrariou a todos e tornou-se aquilo que não queriam. Com exímia sabedoria poetizou o tempo, galanteou as artes e foi músico do amor. “Fracasso”, de 1946, é o samba-canção contrário à constância de sua trajetória, dedicada a aplausos por suas performances emocionais e honestas, ricas em despertar sinceros sentimentos. Os retumbantes versos finais da composição exclusiva de Mário Lago, “por te querer tanto bem e me fazer tanto mal”, emergiram das vozes graves de Francisco Alves e Nelson Gonçalves para perpetuar, mais uma vez, a essência de um homem que soube recolher da simplicidade o sumo de sua poesia.

“Fiz um acordo com o tempo, nem ele me persegue, nem eu fujo dele, um dia a gente se encontra” Mário Lago




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.




O auditório está de pé para apreciar a disputa entre duas vozes agudas que se elevam com categoria. Ao microfone da rádio elas se apresentam com a elegância de quem sabe ser majestade, e as bandeiras flutuantes na platéia alardeiam seus nomes, suspensas por exasperados fã-clubes que não se contentam em elegê-las somente rainhas das canções, promovendo uma histórica rivalidade. No topo mais alto da música, que és o lugar de direito, lá vem Marlene, pinta sob a boca, nariz em riste, lata d’água na cabeça. Lá vem Emilinha, com a mesma pinta, bem aprumada, despertando reações escandalosas. Nossas Rainhas Soberanas, exibem charme, e som de primeiríssima nobreza.



Lata d’água

“É a maior!” gritam os enunciados e admiradores da cantora que se apresenta no programa de Manoel Barcellos. E de fato, ela faz jus à exaltação. Marlene veio ao mundo Vitória e pisou na passarela de notas e versos já com a inspiração da atriz alemã que lhe emprestou o nome artístico. Caminhou sempre com nitidez de passos e o espetáculo que concede desde o início tornou-se sinônimo de autenticidade. Marlene tem no cantar uma marca que é só sua, própria, e inalcançável. E é com essa força da personalidade que ela dá vida à Maria do morro de Luis Antônio e Jota Júnior, no carnaval de 1952 que está gravado na batalha diária, sob o clamor que anuncia Marlene:

“Lata d’água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro não se cansa
Pela mão leva a criança, lá vai Maria”




Qui nem jiló

Marlene teve carreira internacional, sendo levada, em 1959, a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris, pela diva francesa Edith Piaf. Mas foi em solo brasileiro que ela consolidou suas maiores conquistas, atuando em teatros, musicais e shows históricos, como o invejável “Carnavália”, protagonizado ao lado de Blecaute e Nuno Roland e planejado pela cronista Eneida. Na opinião de muitos, o maior espetáculo de carnaval que o Rio de Janeiro teve a honra de receber. E nessa brasilidade cativa que exerce, Marlene apreciou canções românticas e polcas com a mesma integridade que utilizou em sambas tornados imortais. Foi responsável, inclusive, por realizar uma das primeiras gravações da obra de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, com a companhia do grupo vocal Os Cariocas, o baião “Qui nem jiló, em 1949:

“Se a gente lembra só por lembrar
O amor que a gente um dia perdeu
Saudade inté que assim é bom
Pro cabra se convencer, que é feliz sem saber”




Mora na filosofia

A Favorita da Aeronáutica mantinha uma disputa externa com a Favorita da Marinha. As brigas, levadas frequentemente à cena pela ação dos fã-clubes, frutificaram em belas gravações em dupla de Marlene e Emilinha Borba. As duas rimaram guerra e paz como Monsueto e Arnaldo Passos rimavam amor e dor na moradia que construíram na filosofia. O samba de 1954 possui uma das mais bem acabadas letras da canção popular brasileira, sinalizando a deixa perfeita para uma intromissão oportuna do homem que grita em meio aos batuques: “Tá na cara!” Ao que Marlene antecede os versos: “Se seu corpo ficasse marcado, por lábios e mãos carinhosas, eu saberia, a quantos você pertencia, não vou me preocupar em ver, seu caso não é de ver pra crer.” Diamante lapidado que se abrilhanta na voz de Marlene, artista completa que oferece seu talento estelar por onde canta.

“Eu vou lhe dar a decisão
Botei na balança, você não pesou
Botei na peneira, você não passou
Mora, na filosofia, pra quê rimar
Amor e dor?”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.




O pilantra que se auto-glorificava, Carlos Imperial, era mestre para advogar elogios em causa própria. Seus pupilos foram sempre dignos de receberem “Dez, nota dez!”, bordão que ele inventou para o carnaval carioca e que espalhava aos borbotões, infiltrando-se nos espaços mais obscuros com as ferramentas mais suspeitas que um rei pode utilizar. Seu Império subiu à superfície na base de muita esperteza, pilantragem e tino para a coisa, como ele próprio sugeria. O que ficou para a posterioridade? A imagem mal afamada de um sujeito querido por suas composições cheias de suingue e ritmo balanceado e contestado pela exibição barata de sua cafajestagem.



Mamãe passou açúcar em mim

Sem vergonha de utilizar métodos artificiais para promover seus objetivos, o Gordo, apelido de Carlos Imperial por sua postura corpulenta e despachada no comando de seus programas de TV ou no cinema, teve fundamental importância na criação do chamado rock jovem na música brasileira, que mais tarde ele rebatizaria de “pilantragem”. Depois de tentar lançar sem sucesso o ícone da Jovem Guarda que viria a ser Roberto Carlos e de participar da produção do primeiro álbum de Elis Regina, posta para rivalizar com Celly Campelo, Imperial viu no mulato Wilson Simonal sua mina de ouro descoberta. Foi pensando nele que o apresentador, cantor e agitador cultural mais aplaudido e vaiado nos anos 60, compôs a convencida “Mamãe passou açúcar em mim”, em 1966:

“Eu era neném, não tinha talco
Mamãe passou açúcar em mim
Mamãe passou açúcar em mim”




Você passa, eu acho graça

Se em suas tumultuadas presenças no jornalismo e na política, Imperial podia ser apontado por alguns como picareta, apresentando doses nada convencionais de escracho, no trato com a musicalidade ele cultivava exímia classe. Foi após ficar conhecido como grande referencial do rock solto da Jovem Guarda e da Pilantragem que ele se aventurou pelo prolífico campo do samba em homenagem a um desamor. Aparceirando-se com ninguém menos que o gentleman das palavras e melodias Ataulfo Alves ele se tornou co-autor da revigorante “Você passa, eu acho graça”, que em 1968 mandou um recado à flor que perdeu o encanto:

“E agora, você passa, eu acho graça
Nessa vida tudo passa, e você também passou
Entre as flores, você era a mais bela
Minha rosa amarela, que desfolhou, perdeu a cor”




O Bom

A voz rouca e encorpada de Eduardo Araújo já ecoava pelos campos da fazenda de seu pai em Joaíma, no interior de Minas Gerais, desde muito cedo, e logo o fez perceber que a carreira de veterinário talvez não fosse a melhor opção para sua vida. Partiu então em busca de outras terras e resolveu cavalgar pelas notas e acordes dançantes de um ritmo novo que surgia com força e ousadia no cenário musical brasileiro: a Jovem Guarda. Liderada por nomes como Roberto Carlos e Erasmo Carlos e tendo ainda em seu elenco as presenças marcantes de Renato e seus Blue Caps, Ronnie Von, The Fevers, Jerry Adriani, além das musas Wanderléa, Rosemary e Sylvinha Araújo, dentre outros, a Jovem Guarda logo emplacaria nas paradas de sucesso e faria com que um desesperançado Eduardo Araújo deixasse novamente a fazenda de seu pai e voltasse ao Rio de Janeiro, atrás do sonho de cavalgar na crista da onda daquele movimento. O que aconteceu efetivamente no ano de 1967 quando estourou com o seu primeiro sucesso, a canção “O bom”, de Carlos Imperial, que traduzia o comportamento e a postura artística daquela nova geração de músicos.

“Ele é o bom, é o bom, é o bom
“Ele é o bom, é o bom, é o bom
Ah!, Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear
botinha sem meia e só na areia eu sei trabalhar”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 28/11/2010.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010




Quem disse que acabou-se a monarquia no Brasil é porque nunca ouviu Marinês, autêntica rainha do ritmo e das tradições nordestinas.
Nascida em meio à Asa Branca e o pandeiro de ícones do forró, do xaxado e do baião como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, Marinês deu seus primeiros passos na terra seca e amarelada do sertão pernambucano, mas foi em Campina Grande, no interior da Paraíba, que conheceu seu marido Abdias e formou com ele o “Casal da Alegria”.
Logo, os dois se juntaram ao zabumbeiro Cacau, completando o conjunto que começaria excursionando pela região nordeste e em breve ganharia todo o Brasil, toda sua gente.
Trazendo a sanfona, a zabumba, o agogô e o triângulo na sacola, Marinês tornou-se a primeira mulher a liderar com coroa de cangaceiro na cabeça um grupo de forró.



Disparada

A rainha que cantava com malícia e força ganhou logo de cara delatores e admiradores. O pai, embora fosse seresteiro, não a queria como cantora, e por isso ela resolveu que a partir daquele momento não seria Inês Caetano de Oliveira, seria Maria Inês, que por descuido de um radialista apressado, receberia em seguida novo batismo: Marinês. Além disso, padres católicos pediam aos fiéis que não comprassem seus discos, considerados pecaminosos e de mau gosto, embora sua mãe fosse cantora de igreja. Para completar, a rainha sofria ainda com o preconceito que vinha das outras regiões do país, que reagiam com pudor e desdém à música nordestina. Apesar de tudo, Marinês prosseguiu soberana entre sua gente e foi ao encontro do Rei do Baião. Luiz Gonzaga a coroou de imediato “Rainha do Xaxado”.

“Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar”




Gírias do norte

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, trazendo para a Cidade Maravilhosa o canto arretado que ouvira desde pequena nos alto-falantes da Paraíba, Marinês recebeu de Chacrinha novo complemento ao seu nome, que fazia referência a todos aqueles que a adoravam e gostavam de sua música. Ela era a partir daquele instante o que sempre foi desde que saiu da barriga de sua mãe, era Marinês e sua gente. Porque Marinês é o nordeste por inteiro, na raiz, no caule, e por isso mesmo um pedaço importante e danado de bom do Brasil. E sua gente somos nós, súditos da Rainha do Xaxado, a Rainha do Forró, aquela que trouxe para o país inteiro as gírias gostosas do norte.

“O Zé-do-Brejo quando se casariou
Ele me convidariou
Pra quadrilha eu marcariá
Marcariei uma quadrilha ritmada
Fui até de madrugada
Todo mundo com seu pariá”




Bate coração

Nessa longa caminhada a rainha Marinês, neta de índios Airús, filha legítima do nordeste, participou do filme “Rico ri á toa”, de Roberto Faria, gravou disco “Feito com amor”, todo dedicado às festas juninas, recebeu dois prêmios Euterpe como melhor cantora regional e melhor vendagem, ganhou discos de ouro pelos LP´s “A Dama do Nordeste” e “Bate Coração”, gravou choros e temas românticos como “Carinhoso” de Pixinguinha e “O Amor morreu” de Dominguinhos e Anastácia, além das inesquecíveis e contagiantes “Peba na Pimenta” e “Pisa na fulô”, de João do Vale. Para coroar a trajetória de largo sucesso, a Rainha do Xaxado cantou ao lado de nomes quentes da música brasileira, como Gilberto Gil, Zé Ramalho, Alceu Valença, Genival Lacerda, Dominguinhos e sua principal seguidora, a leoa do norte Elba Ramalho.

“Oi tum, tum bate coração
Oi tum coração pode bater
Oi tum, tum bate coração
Que eu morro de amor com muito prazer”




Tá virando emprego

Após 71 anos entoando seu canto típico e ritmado, Marinês prossegue com aquela voz agitada e dançante que arrasta o pé e acelera o coração, animando quadrilhas e festas, animando qualquer pedaço de terra onde se dance um bom xaxado, um bom forró e um bom baião. Prossegue agora ao lado de São Pedro, Santo Antônio e São João.

“-Andam dizendo que nosso chamego
Nêgo tá virando emprego, nêgo falam pra daná
-Tem nada não nêga, se avexe não
Isso é pra quem canta forró, xote, baião”




Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 21/11/2010.

terça-feira, 16 de novembro de 2010




Antônio Nássara, ou simplesmente Nássara, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 11 de novembro de 1910 e faleceu no dia 11 de dezembro de 1996. Compositor e caricaturista, Nássara foi vizinho de Noel Rosa, e compôs com ele a marcha “Retiro da Saudade”, gravada por Francisco Alves e Carmen Miranda em 1934. Nássara completaria em 2010, 100 anos de vida, e foi o autor de sucessos como “Alá lá ô”, com Haroldo Lobo, “Mundo de Zinco” e “Balzaquiana” com Wilson Batista, “Formosa”, com J. Rui, “Periquitinho verde”, com Sá Róris, entre outros.



Autor do primeiro jingle do rádio brasileiro, Nássara tinha como uma de suas marcas registradas parodiar e utilizar versos de outras músicas em suas composições. Além disso, foi ele o ilustrador da capa do LP “Polêmica”, que trazia caricaturas de Noel Rosa e Wilson Batista. Por sua irreverência afiada de traços melodiosos e firmes, Antônio Nássara será sempre lembrado como um dos grandes artistas brasileiros, tanto na música, como no desenho, e merece todas as homenagens nesse centenário do seu nascimento.




Formosa


Nássara era um encantador de formas. Mesmo antes das notas e dos versos ele já trabalhava em suas linhas melódicas. Em 1928, chegou à Escola Nacional de Belas Artes e começou a desenvolver os pilares de sua paixão. Lá, formou um conjunto musical com Barata Ribeiro, Manuelito Xavier, Jaci Rosas, Luís Barbosa, e J. Rui, que se tornaria seu parceiro na canção “Formosa”. Lançada por Luís Barbosa e gravada no carnaval de 1933 pela dupla Francisco Alves e Mário Reis, a marcha foi a primeira música de Nássara a estourar na boca do povo. Sob confetes e serpentinas não havia quem não cantasse os irresistíveis versos: “Foi Deus quem te fez formosa, formosa, ô formosa, porém este mundo te tornou presunçosa, presunçosa...”



Periquitinho verde

“Periquitinho Verde” é um desses casos onde Nássara faz uso de sua verve cômica e sua conhecida habilidade em incorporar frases famosas de outras canções. Nessa marcha de 1938 ele costura com bom humor os enlaces matrimoniais sob o ponto de vista da mulher, que diz que não atura “mamãe eu quero mamar”. Amigo do ventríloquo Batista Júnior, pai das irmãs Batista, Nássara teve a oportunidade de ouvir a menina Dircinha Batista cantar e definir que ela lançasse a música, uma de suas parcerias com seu professor de desenho Sá Róris, também compositor.



Florisbela

A favorita para levar o concurso de carnaval do Rio de Janeiro em 1939 era “A Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto e lançada por Orlando Silva. Mas a vencedora foi “Florisbela”, de Nássara e Frazão, na voz do seresteiro Silvio Caldas. No mesmo ano, as duas músicas foram citadas na obra-prima de Ary Barroso “Camisa Amarela”, que também trazia em sua letra o tema carnavalesco. Apesar disso, Nássara reclamava que a composição sobre as paqueras de um casal fosse pouco regravada.




Meu consolo é você


No mesmo 78 rotações em que cantava “A Jardineira”, Orlando Silva apresentava “Meu consolo é você”, de Nássara e Roberto Martins. Em virtude da primazia da composição, considerada uma das mais belas do cancioneiro brasileiro, o “Cantor das Multidões” conseguiu algo raro: fazer sucesso com os dois lados do disco. A música sagrou-se vencedora no concurso promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro daquele ano, então Distrito Federal, categorizada como melhor samba. O pedido de perdão em forma musical recebeu os arranjos do maestro Radamés Gnatalli.



Nós queremos uma valsa

Frazão foi sem dúvida o parceiro mais imponente de Nássara. Tanto no sobrenome sonoro, precedido por um extravagante Eratóstenes, como no que diz respeito ao número de sucessos. Entre todos eles, “Nós queremos uma valsa”, possui história das mais interessantes. A idéia criativa de lançar a música em pleno carnaval de1941 foi de Frazão, e trouxe alívio supressor à Morais Cardoso. Tudo porque o jornalista do periódico “A Noite” era simplesmente o primeiro Rei Momo do carnaval brasileiro, e como tal, cumpria o figurino de porções vantajosas em seu corpo portuário de cervejas. Os desfiles em ritmo de samba e marchas alucinantes deixavam seus pés enormes ainda mais inchados. Por isso, a novidade foi instituída de imediato pelo Rei Momo e tornou-se sucesso na voz de outro Rei, o da Valsa, Carlos Galhardo, também gravada ao acordeom por Luiz Gonzaga. Toques de clarim anunciam a entrada triunfante da música que saúda os patinadores.



Alá lá ô

O folião Haroldo Lobo, apelidado de clarinete por sua voz agudíssima, era segundo o amigo Antônio Nássara: fabuloso. E tinha razão de ser. Criador de inúmeras marchinhas que se tornaram parte integrante da memória carnavalesca, ele pediu para o caricaturista completar uma despretensiosa composição do ano anterior. Como não podia deixar de ser, a música era em ritmo de festa e euforia e destacava versos que falavam de sol e caravan. Para isso, Nássara unificou uma divindade a um conhecido cartão postal africano, o deserto do Saara. Pronto, dali para Haroldo arrematar com o refrão entusiasmado foi um pulo: “Alá lá ôôô, mas que calor, ôôô...”. Faltava agora os arranjos e a orquestração, definidos com maestria e alta categoria por ninguém menos que Pixinguinha. Nas palavras de Nássara: "Pixinguinha tinha dividido a melodia em compassos marcantes, saltitantes, brejeiros, originais, vestindo-a com roupagem da alma popular. E eu tive uma sorte danada porque "Alá lá ô" ficou sendo uma das músicas mais tocadas no carnaval. Das que fiz, foi a única que me rendeu alguma coisa”. A música gravada por Carlos Galhardo em novembro de 1940 foi lançada no carnaval de 1941. Virou sucesso permanente.




Balzaquiana


A gíria criada por Nássara para denominar as “mulheres depois dos trinta anos” foi tirada de um conhecido romance de Honoré de Balzac. Fazendo uso de sua conhecida perspicácia, Nássara percebeu ponto aberto para brincar com divertida preferência amorosa. Seminal grão da celebrada parceria entre ele e Wilson Batista, a marcha ecoou na voz do iniciante Jorge Goulart em 1950, e garantiu ao cantor seu primeiro sucesso. Dali em diante, Jorge se tornaria especialista em canções do gênero e gravaria novos sucessos da recém-formada dupla. A música alcançou tal proporção que foi traduzida pelo radialista e adido cultural da embaixada francesa no Brasil, Michel Simon. No país de origem do autor que dá nome ao título, a canção pôde ser ouvida em comemoração ao centenário do seu nascimento. Hoje, a versão francesa encontra-se na “Casa de Balzac”, museu que guarda as memórias do escritor francês.



Sereia de Copacabana

Filho de libaneses, o carioquíssimo Nássara iniciou sua carreira de compositor vencendo concursos em que participavam Lamartine Babo, Ary Barroso e seu vizinho de Vila Isabel, Noel Rosa. Consagrado através das marchas, Nássara proporciona animada disputa, dessa vez entre mulheres de vários países, mas seu coração acaba se decidindo pela sereia brasileira, em parceria sua com Wilson Batista. “Sereia de Copacabana” foi recebida pelo público através da voz encorpada de Jorge Goulart, no carnaval de 1951.



Mundo de zinco

Crescido em ambiente carnavalesco, Nássara ajudou a organizar em 1932 o primeiro concurso de escolas de samba do Rio de Janeiro. Frequentador do “Ponto de Cém Reis” e do “Café Nice”, locais de encontro da boêmia, em 1952 ele compôs ao lado de Wilson Batista, um samba para Mangueira, escola que contava com sua torcida. Visualisando a história do morro, os versos finais da música são em tom de despedida e deixam clara a intenção dos compositores de exaltarem o que admiram: a glória do samba, o céu de Mangueira, os malandros e as cabrochas. Interpretada por Jorge Goulart, foi premiada como samba mais bonito do carnaval carioca daquele ano. De acordo com o jornal “Última Hora” da época, possuidora de “letra inspirada, bonita e ao mesmo tempo fácil de ser apanhada pelo povo; sua música é melódica, mesmo nas estridências necessárias do apito de trem, harmonizando-se em ritmo essencialmente vivo e vibrátil.”



Chico Viola

A morte de Francisco Alves, aclamado como o Rei da Voz, em acidente de carro em 1952, comoveu o Brasil inteiro. Não apenas as escolas de samba choraram, mas todos que eram fãs e parceiros do cantor, e por isso Wilson Batista e Nássara escreveram uma das mais tocantes músicas para se despedir do amigo. Conhecido no meio musical por Chico Viola, o apelido serviu para expressar a dor que os compositores sentiam pela falta daquele que reinou absoluto nas primeiras décadas de ouro do rádio brasileiro, com direito à menção honrosa ao poeta Noel. Cantada na voz emocionada de Linda Batista, foi gravada em 1953, e acabou se transformando na última canção de expressividade de Nássara. Desiludido com a maneira como passou a ser comercializada a festa que tanto adorou, só voltaria a compor em 1968, lançando a marcha “O craque do tamborim”, com Luís Reis. O caricaturista que começou fazendo fado para o anúncio de uma padaria no “Programa Casé”, abandonou a arquitetura e acabou desenhado como a cara de um carnaval engraçado e alegre.

"Alá, Alá, Alá, meu bom Alá, mande água pra Ioiô, mande água pra Iaiá" Nássara



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 14/11/2010.

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