quinta-feira, 15 de dezembro de 2011




Rude João Batista. Do Vale, donde emergem misérias amarelecidas. Que o tempo não carcomeu, pois Carcará se enganchou sobre vestes rasgadas, com olhos de furar o sol.

Profeta do norte, repentista sem pátria. Cabeça na bandeja de palha. A ema gemeu quando esqueceram teu parto. Tal retirante legou em cada canto um aviso, gemido, burburinho. Num arrasta-pé sem vergonha, com muita alegria. Nutrido à carne escassa, seca mandioca, picardia. Mas se dança e belisca numa danação arredia, pouco tímida, que lança e provoca enquanto espia. Malícia de ventre em véu, sem amarras nem covardias.

O segredo do sertanejo ninguém explica. Convide Coroné Antônio Bento e pesque uma isca. Só dando com o peba na pimenta pra suportar terra assim ardia. Sorriso bronco branco asseado. Casca escura de fina usura.

Assim pesado, fruto de todos os pesares, maldizeres, apertos, segura a pena com delicadeza e percorre com anjos nos pés a asa do vento, emaranhando-se na teia da aranha, se lambuzando com o mel da abelha.

As Pedreiras do Maranhão te criaram para o mundo. E a cachaça de todo dia, o suor escorrendo na testa, encontrando o peito de pêlos, grudaram com tanta força em teu corpo que não posso dizer se não te perderam, ou foste tu, João, que não largou da mão deles.

Dos teus irmãos, à beira do palco no teatro Opinião, distantes, repudiando as demonstrações de desafeto dos donos da panela, eximindo de culpa os que cozinham nela, pois já trazem tantas cruzes e tantas velas acesas.

Visões de um Cego Aderaldo a espalhar correntes? Talvez a sina do irmão sem berço Patativa, nos braços de Assaré? Importa como o pássaro foi capturado? Como se lhe arrancou os dentes? Ou como o coração cuspiu as entranhas? Tu és barro levado ao fogo por Mestre Vitalino, “puro”, como diz Chico Anysio. Transformação divina. “A rosa não tem porquês. Ela floresce porque floresce.” Ângelo Silésio. Porque as flores são tão bonitas jogadas ao chão e tão distantes jogadas no vento.

Fulô caída no chão precisa de pés esgarçados, estrela no céu é miúda e brilhante. Mas não iluda, João, não iluda. Tua espera é realidade. Nossa miséria, nossa fome. Que na tua morte, sejamos menos ingratos.

Raphael Vidigal

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 6/12/2011.

terça-feira, 1 de novembro de 2011



Cazuza foi um dos mais importantes cantores e compositores da década de 80, tendo sido um dos principais personagens do rock nacional que se instalou definitivamente na música brasileira a partir dali. Em sua obra, a representação da homossexualidade não se deu de forma linear e única, pelo contrário, Cazuza tocou de diversas formas no assunto, a maioria das vezes nas entrelinhas e através de metáforas, como era seu estilo.

Além de ter se assumido bissexual publicamente, Cazuza foi um dos compositores mais importantes na música popular brasileira na abordagem do tema, por tê-la feito de tantas maneiras tão distintas em mais de 10 canções durante a breve carreira, de 1982 a 1990.

1- Por que a gente é assim? (1984)

Primeira música gravada por Cazuza com referência à homossexualidade, em 1984. A canção é de Cazuza, Ezequiel Neves e Roberto Frejat e enfrentou resistência dos companheiros de banda de Cazuza para ser gravada por conta dos versos que remetiam à homossexualidade.



2- Narciso (1984)

Em seu terceiro disco como vocalista do Barão Vermelho e no mesmo ano que gravara sua primeira canção com referência à homossexualidade, Cazuza também gravou a segunda, que contava uma história de amor mal resolvido e trazia os versos: “nós somos iguais na alma e no corpo”. A música é de Cazuza com Roberto Frejat.

3- Só as mães são felizes (1985)

Fora do grupo Barão Vermelho, em seu primeiro disco solo Cazuza resolveu fazer uma homenagem a todo tipo de comportamento considerado marginal, maldito, e compôs com Roberto Frejat a música “Só as mães são felizes”. A homossexualidade aparece como um desses tipos de comportamento, e é representada através de uma citação debochada a uma das grandes referências literárias de Cazuza, o poeta beatnik Allen Ginsberg, ativista das causas homossexuais nos Estados Unidos.



4- Culpa de Estimação (1987)

Em mais uma canção sua em parceria com Roberto Frejat, Cazuza discursa sobre a culpa cristã que adquiriu ao longo dos anos por ter, segundo ele, sempre estudado em escolas católicas. A partir desse contexto ele refere-se à sua bissexualidade utilizando-se de nomes bíblicos, Eva e Adão, ao dizer-se indeciso entre o amor de um homem ou uma mulher.

5- Quarta-feira (1987)

O disco “Só se for a dois”, de 1987, marca o ano em que Cazuza fala de forma mais escancarada em uma música sua sobre a homossexualidade. Mesmo já tendo dito diversas vezes em entrevistas ser bissexual, apenas em 1987 Cazuza cantou sua opção de forma definitiva em uma música, através dos contundentes versos: “eu ando apaixonado por cachorros e bichas (....) porque eles sabem que amar é abanar o rabo, lamber e dar a pata”. A música é uma parceria de Cazuza e Zé Luiz.



6- Heavy Love (1987)

Ainda em 1987, Cazuza voltava a fazer referência à homossexualidade de forma implícita, enigmática, com os versos da música que continham quase que uma idéia de rebeldia e transgressão associada à homossexualidade: “pro nosso amor descarado e virado o mundo lá fora não serve pra nada.” A música foi composta por ele em parceria com Roberto Frejat.

7- Guerra civil (1988)

No disco Ideologia, de 1988, Cazuza lançou sua primeira canção que fazia referência clara à homossexualidade feminina. Em parceria com Ritchie, “Guerra civil”, continha os fortes versos: “freiras lésbicas assassinas”, revelando mais uma vez o modo transgressor com que Cazuza tratava do tema.

8- O Tempo não pára (1989)

Em janeiro de 1989, Cazuza lançou a música que marcaria definitivamente sua carreira, “O Tempo não pára”, parceria dele com Arnaldo Brandão, falava entre outras coisas, de uma visão sobre a forma como a sociedade costumava tratar os homossexuais à época, com os famosos versos: “te chamam de ladrão, de bicha, maconheiro, transformam um país inteiro num puteiro, pois assim se ganha mais dinheiro”.



9- Eu quero alguém (1989)

No mesmo ano de 1989, em seu último disco em vida, “Burguesia”, Cazuza lançou “Eu quero alguém”, música em parceria com Renato Rocket que fazia referência à bissexualidade através da idéia de vestimentas que tradicionalmente identificavam o masculino e o feminino, com os inicias versos: “eu quero alguém, que use calça ou saia”.

10- Como já dizia Djavan (Dois homens apaixonados) (1989)

Também em 1989, Cazuza utilizou-se do discurso de outro compositor para se referir à homossexualidade. Adotando a frase de Djavan no título e nos versos finais da música, Cazuza, como raramente aconteceu na sua obra, dessa vez foi claro em sua referência.

11- Preconceito (1989)

Cazuza também fez referência à homossexualidade assumindo o papel de intérprete, como quando em 1989 gravou a música “Preconceito”, de Fernando Lobo e Antônio Maria e que já fora sucesso na voz de Nora Ney na década de 50, já naquele momento a música era cultuada pelos homossexuais e Nora se tornou diva entre eles. Anos mais tarde, Cazuza a regravou novamente utilizando-se de seu discurso para provocar o sentido da homossexualidade.



12- Esse cara (1989)

Em entrevistas ao longo do anos de 1988 e 1989, Cazuza, que já era bissexual assumido, dizia querer explorar mais em suas músicas seu lado mais feminino. Ao gravar a canção “Esse cara”, de Caetano Veloso, em 1989, Cazuza colocava-se como mulher e expunha sua faceta mais delicada. A música vinha no disco duplo “Burguesia”, na sequência de “Preconceito” que já fora reveladora de traço homossexual na década de 50 e agora era regravada por Cazuza. A composição das músicas na sequência conceituava o sentido homossexual presente em ambas.

13- Jovem (1990)

Cazuza também tratou do tema da homossexualidade apenas como compositor. “Jovem” foi composta por ele em parceria com Arnaldo Brandão, e gravada pelo grupo Hanói Hanói em 1990. A música trazia a idéia de que a homossexualidade era perante os olhos de alguns uma coisa nova, transgressora, moderna, além disso, a expressão usada para designá-la na música é carregada de coloquialidade e deboche, através dos versos: “você tá muito avançado, seus amigos desconfiam que você é veado”.



14- Problema Moral (1984 ou 1985)

Sem data definida, a canção “Problema Moral”, de Cazuza, Roberto Frejat e Dé”, gravada originalmente por Paulette, perdeu-se no tempo, mas seus versos permaneceram resguardados. A música discursa sobre a história de um amigo que conquista a namorada do outro, e acaba se justificando com uma irônica referência à bissexualidade, além de trazer a idéia de que ainda era preciso disfarçá-la: “mulher de amigo meu, pra mim é homem, eu transo no breu”.

15- Quero ele (1989)

A canção “Quero ele”, foi feita especialmente por Cazuza e Lobão para o espetáculo teatral “Querelle”, estrelado em 1989 pela transformista Rogéria. A música conta a história do personagem principal da peça, o marinheiro homossexual Querelle, e faz referências também à quem o interpreta, em versos contundentes: “Quero Querelle e seu irmão, Quero Rogéria e seu pauzão”.



Raphael Vidigal

Parte de projeto experimental acadêmico realizado na PUC MINAS.

domingo, 2 de outubro de 2011



Yamandu Costa: as cordas lhe desobedecem. Incautas, prontas a insolentes provocações, por incitação tutorial. Seus doze dedos se transformam em treze, quatorze, infinitamente. Amarram-se aos trilhos do violão, descarrilados em seqüência.

À deriva, no suntuoso Grande Teatro do Palácio das Artes, na última quarta-feira, o gaúcho iniciou sua expedição com bela homenagem a Raphael Rabello, um mito da arte de trovejar violões, içando as caravelas de “Samba pro Rafa”, em magistral partida.

“Nas ondas verdes do mar”, suspirou Caymmi de cadente saudade à “Mafuá”, obra de Armandinho Gomes, que dá nome ao disco. Insurgindo em intervenção divina, arriscou-se a contrariar os donos do tempo, e espalhar os raios púrpuros do seu “Choro Loco”.

Se “os piores atos são feitos para o bem, e esse é um costume do amor”, como escreve seu conterrâneo Fabrício Carpinejar, “Elodie” despeja emoções lavadas pela espuma que declina na distância. Feita em homenagem à mulher, à espera num porto distante da França, soa revigorando os perigos da ausência, e a fortaleza de pedras do amor.

Disposto a desbravar inóspitas regiões de seu instrumento, Yamandu se aventura, monta um cavalo baio, dedica o canto à avó, entoa toda a “mística de Sarará”, em suas próprias palavras. Matuto de berço, recolhido as flores alvas do jardim de sua infância sulista, tenta acalmar o coração do filho em prantos. Em vão, somente lega a suavidade de “Bem Vindo” à platéia. Dentro ao mar em dias de ressaca, que impressiona e chantageia.

Como os ancestrais venham a lhe suprir a bússola que determina águas bravias, Baden Powell surge imponente em sua estratégia de arrastar correntes e lapidar o chão do navio, com pés que batem e se desprendem, na execução afiada de “Sambeco”. Para que o cabaré se arme e os tripulantes dancem, Yamandu chacoalha a “Suíte Colombiana No. 2 – Porro”, do capitão latino-americano Gentil Montaña.

Alardeada a presença de “Ana Terra”, personagem do romance do também gaúcho Érico Veríssimo, o violonista deixa com que o vento sugira a sensação de vozes amanhecidas, e triunfe o coro de anjos no céu suspenso.

Ao toque final dos sinos que anunciam a noite, o anfitrião, na posse dos aposentos sem cerimonial, convida o encantador das Minas Gerais, Marcelo Jiran, que surge com sua flauta prateada e acompanha as divercionices (invencionices e diversões) com o seu “Choro Classudo.” Os aplausos encobrem o marinheiro, e paira sobre o deleite a poesia “rimbaudiana” liberta em mar de trôpegos sons. Yamandu toca de olhos fechados. Decifra o enigma, Tom Zé: está “iluminando pra poder cegar.”

Raphael Vidigal

quinta-feira, 22 de setembro de 2011



Turva felicidade a de Arrigo Barnabé. Essa que se agarra às ostras, que se agarra às algas. Ainda assim, espontânea. Ainda assim, clandestina. Tal e qual uma flor de Clarice Lispector, que ao “se erguer, parece quebrar-se”.

Quando emerge do pântano, sob o relento do olhar de crocodilos, espia uma luz clara que tamborila de instrumentos multicoloridos: ali está Schoenberg, e sua escala de arco-íris sem tom.

Com o olhar de Mary Shelley, sua “pele encarquilhada, lábios negros e retos” urde o grito de Frankenstein, boca retorcida do medo, apupos e aplausos no Festival Universitário de 1979, Diversões Eletrônicas, Silvio Caldas e Orestes Barbosa sob a ótica de luminosos fórmicos.

Rufem os tambores, há uma missa a ser celebrada para Arthur Bispo do Rosário, o artista plástico, que se confundiu louco, e outra missa a ser celebrada para Itamar Assumpção, o louco que se confundiu artista, e assim sejam todas as distorções de imagem, eternas e sagradas, na extrema unção da irrealidade.

Abre-se o piano, arrasta sua longa cauda, guarda as jóias na “caixa de ódio” de Lupicínio Rodrigues, o passarinho que viu a raiva consumar o amor com as garras de um gavião. E arranha a garganta de Cássia Eller, a cantar o “Dedo de Deus”, e alivia as cordas de Tetê Espíndola, a acompanhar suas peraltices transformistas, e dueta com Ney Matogrosso, em espetáculo de androginia, Dionísio e breu do mundo.

Clarão mágico de influências rodantes: não pergunte, Skylab, quem matou nosso personagem, ouça a língua de Caetano Veloso: acrilírico. Consonantes telepatias digestivas. Mastiga, mastiga, até encontrar Arrigo, até insurgir a beleza da estranheza sem nenhum acorde, sem nenhum tom, nenhuma vogal, nenhuma consoante. Escorre o sabor de veneno. No porão, as teias trazem Tom Waits.

Do caos vem a criatura, irrestrita criatura de paz nesse labirinto. Quero “ver se você consegue me seguir neste labirinto”. Tubarões voadores, sou Clara Crocodilo. Tubarões voadores, é o terreno espírito. Tubarões voadores, de repente Orson Wells, trilhas, locuções, para todo um filme, uma única tomada, o último rife. “Pois te entender é o ato de destruir” Arrigo Barnabé.

Nascido em Londrina, compositor com formação erudita, que teve fundamental contribuição para a chamada ‘Vanguarda Paulista’, movimento que desmatizou (arredou as cores, inovou) da música brasileira, a partir de sua iniciativa teatral, inspirada em histórias em quadrinhos e no dodecafonismo, para remodelar o tom da tradicional canção.

Discos:

1980 – Clara Crocodilo (com a banda Sabor de Veneno)
1984 – Tubarões Voadores
1986 – Cidade Oculta (trilha sonora)
1987 – Suspeito
1992 – Façanhas
1997 – Ed Mort (trilha sonora)
1998 – Gigante Negão
1999 – A Saga de Clara Crocodilo
2004 – Missa In Memorian: Arthur Bispo do Rosário
2007 – Missa In Memorian: Itamar Assumpção
2008 - Ao Vivo em Porto (com Paulo Braga)


Raphael Vidigal

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 22/09/2011.

terça-feira, 13 de setembro de 2011



Arnaldo Antunes sempre se divertiu em cena. O antídoto risonho proposto por Nietzsche para desarvorar a vida é levado a ferro e fogo por sua persona bem grata. No palco do Instituto de Arte Contemporânea e Jardim Botânico (popular Inhotim), no último dia 11 de setembro, o artista desfilou sua dança apocalíptica, sua poesia concreta e seu terno cheirando a rasgado, eucalipto saído dos quadrinhos de Batman, provável “Duas Caras”, pois bom intuitivo que é, prefere os vilões.

O desafio a que se lança com microfone às costas, óculos preto & branco, e gravata ajeitada realça a gravidade de uma música pop imbuída de pretensão e ousadia. Tanto quanto o hermetismo melódico e estrutural de suas composições mais distantes, a proximidade também discorre arquitetada em balançantes hastes de ouro.

Pois fazer música pop de qualidade é tão sublime quanto lançar distorções contra tons. No abandono de seu lar, Arnaldo convida, “A Casa é sua”, parceria com Ortinho, cantada ao ouvido do coração, em clima de multidão: “Não me falta cadeira, não me falta sofá, só falta você sentada na sala, só falta você estar...”

Antes, porém, é Adoniran Barbosa quem invoca as chamas do passado, em sua restrita contestação ao ritmo que dá nome ao disco de Arnaldo, “Já fui uma brasa”, proclama: “Eu gosto dos meninos deste tal de iê iê iê, porque com eles, canta a voz do povo, e eu que já fui uma brasa, se assoprar, eu posso acender de novo”. Sem consternação, acende o novo fogo da platéia.

“Iê Iê Iê”, a própria, é música autoral construída na companhia dos parceiros tribalistas Marisa Monte e Carlinhos Brown que brinca com o sonhado sucesso: “Visto meu casaco de couro bang bang, manchado de batom e de sangue, se você pedir eu subo no palanque, e mostro aquele passo de funk”. Em contraposição melódica, “Essa Mulher” é ácida subordinação masculina, que rebobina êxito do álbum “paradeiro” (em minúscula): “Ela quer viver sozinha sem a sua companhia, e você ainda quer essa mulher”.

Alçada a estampa de homens entregues, surgem as homenagens a Odair José, que em “Quando você decidir”, apela na voz embargada de Arnaldo Antunes: “Lembre que eu existo, meu amor”, e Lupicínio Rodrigues, urgido sob a ferocidade dos versos e da guitarra de Edgar Scandurra: “Agora você vai ouvir aquilo que merece!”.

Em ambiente mais adaptado ao verde que espalha a paisagem, “Vou festejar”, de Jorge Aragão, Dida e Noeci é embalada nos metais da voz de Arnaldo, que ora tremem, outrora reluzem calmos. Em nova idiossincrasia, realça a beleza instantânea de “Americana”, da lavra do sanfoneiro potiguar Dorvigal Dantas, reiterando o inegável talento para remodelamentos sensíveis em composições alheias.

A leveza e agilidade com que Arnaldo tece seus movimentos estranhos de corpo a sugerir coquetéis de graças é interlocução dos textos sonoros e de palavras, que em “O Que Você Quiser” se traveste de “fruto proibido, deus ou diabo”, “Invejoso”, parceria com Liminha, alimenta o pecado capital cotidiano em delícia que recheia melodia sinuosa, que transcorre do melancólico ao cômico, enquanto “Longe”, de Arnaldo, Betão Aguiar e Marcelo Jeneci, surge sob o manto de translúcida reflexão nostálgica: “Onde é que eu fui parar? Aonde é esse aqui? Não dá mais pra voltar, porque eu fiquei tão longe?”

Em derradeiro número da tarde, o mestre de cerimônia inconforme (inconformidade sem formas inabaláveis), Arnaldo Antunes, saúda os convidados com seu titânico “Pulso”, arregimentado com Toni Belotto e Marcelo Fromer, na época em que a banda ainda era do iê iê iê, deixando espatifar palavras e sons sobre o palco, belo vilão desejável que é.

Raphael Vidigal

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 13/09/2011.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011



As lágrimas caem por elas mesmas. Nem que você queira, me levará ao centro de reabilitação. Estou na Motown. Anos 50. Negras vozes, melodias negras. Amores desfeitos na gravidade de um contrabaixo.

A tinta é uma mágoa na sobrancelha. Os cílios cortinam, mas o olhar revela. E a boca adquire o remorso compartilhado. Coração de alicate nas tatuagens. Marcas no corpo. Rouca alma.

O ritmo do blues. A batida do jazz. A batida das máquinas. O entrecortar do alicate. O balanço dos vocais. Remexendo bebidas, seringas, cabelos colados. Quietos. Esvoaçantes. Voa-se muito pela fumaça. Amy Winehouse. Assim meio perdida. Em linhas quase medíocres.

“Love is a losing game”. Eu sei. Quando a cantora apareceu, não era uma menina tímida. Disfarçava o sorriso melancólico. Mostrava a dor. A postura altiva lhe recobria os cabelos ao alto de seus pés, saias bem engomadas, maquilagem de alta fantasia.

Foi tudo de verdade. Não foi um sonho que a gente teve, como aconteceu com Cartola, já disse Nelson Sargento. Nem uma epígrafe alinhavada por Oscar Wilde, a mostrar sua alma, das profundezas. Foi tudo tão real e artístico que houve quem descambasse a querer mostrá-la como uma de nós. Com os mesmos problemas. Maquilagem borrada. Seios de fora. Cicatrizes espalhadas pelo corpo magro, lânguido e aquela voz.

Era de verdade, por mais que se queira crer que não. Que fosse mais natural e óbvio tratá-la dentro de uma embalagem. Que ela fosse negra, criada nos subúrbios americanos. A sujeira, a estranheza, a excentricidade espaireceu como gotas de poeira. Incapazes de impregnarem vestidos alvos.

A sobriedade que cobra-se dos artistas parece ser a mais absurda das realidades. Pois a fantasia daquela menina egressa diretamente dos anos 50 americanos trazia na loucura o ponto de contato com estrelas claras. Cintilantes? Gostariam de dizer. Talvez um pouco mais. A palavra cisne não expressa a brancura do vôo da ave, escreveu Patti Smith.

E todos os badulaques, tintas, acessórios, imagens não capturam a voz. A voz que só é ouvida por ela própria. E por quem tem no coração uma mágoa. Verdadeira, realizada, bem guardada. Lustrada com cuidado. Amy Winehouse colocou sua mágoa na voz. Não o contrário.

E se um dia a mágoa é líquida, não petrificada como busto estóico, por que não permiti-lo à sua cantora a imaterialidade do que é eterno?

“Minhas lágrimas secam sozinhas.” Descansam as manchetes. Resta uma voz, com tudo o que quis dizer.

Raphael Vidigal

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 23/08/2011.

terça-feira, 12 de julho de 2011



Não espere arroubos sonoros. Zélia Duncan canta meiga, delicada, suave, suas composições novas. Isso é o que prepara o disco. Diante da platéia a contenção das interpretações se revela desafiadora e fugaz, com leve sorriso de coragem sorrateira.

A presença de Zélia no palco é resguardada de beleza, pelo vestido de Ronaldo Fraga (o coração do artista segundo a cantora), o cenário de Analu Prestes, pinturas abstratas refletidas pelas cores de uma iluminação climática, e a simpatia da protagonista, acompanhada de perto por Ézio Filho (direção musical e contrabaixo), Webster Santos (violão, bandolim e guitarra), Jadna Zimmerman (bateria, percussão e flauta) e Leo Brandão (teclados e acordeom).

À vontade desta, dissolve-se o desdém “pelo sabor do gesto”, título do álbum lançado em 2009 que alicerça show apresentado no último dia 10 de julho no Palácio das Artes, e que rende belo número onde a cantora posiciona-se com violão ao colo e interpretação intimista.

Ao abrir a apresentação com “Boas Razões”, versão de música do artista francês Alex Beaupain, Zélia assinala a que veio, embora ainda distante fisicamente do público, já esboça o vigor e a vontade com que irá conduzir a noite. A participação de Fernanda Takai nessa canção no disco é substituída pelos vocais do guitarrista da banda. Na sequência, emenda-se a solenidade a Rita Lee, de quem Zélia é eterna devota, com a pop roqueira “Ambição”.

Mas o circo aconchegante começa a pegar fogo a partir de “Intimidade”, música de Zélia e Christiaan Oyens que lembra os primórdios do Barão Vermelho (da época de Cazuza & Roberto Frejat), um bluesy cadenciado com letra ácida e humor farpado. A cantora esparsa em rigidez malemolente os gestos necessários ao destinatário da mensagem.

Aliás, um dos pontos altos do espetáculo é a condução sonora de Zélia Duncan, que se distingue por todo o corpo com intervenções precisas de interação bem humorada e suposição ligeira de pernas e braços, que logo se recolhem ao lugar de origem.

Na super-tocada “Tudo sobre você”, a nitidez dos versos se estende ao belo arranjo, inventivo e dinâmico, onde os instrumentos retomam lembranças de festas de aniversário infantis, artimanhas de John Ulhoa, co-autor da música, produtor do álbum e segundo Zélia Duncan, maior responsável pela existência do tudo em cena, ao respondê-la em e-mail sobre o projeto: ‘xá com nóis’, brincadeira diversas vezes direcionada à platéia.

A “Felicidade” de Luiz Tatit, embandeirada pelo autor paulista como o novo mal do século em lugar da depressão, escancara tom debochado sugerido pelo sobe e desce de sobrancelhas da cantora. O que lhe é complementado pelo sorriso de lado e os questionamentos sóbrios, quase falados: “Não sei por que tô tão feliz, preciso refletir um pouco e sair do barato.”



Nada mais lhe escapa, os espaços vazios preenchidos de felicidade argumentam sem precaução nenhuma a letra propositadamente rimada de Zeca Baleiro, ao denominar símbolos de desejos amorosos da geração descartável: do “tesouro dos czares” ao “céu de celulares”, esta uma imagem perfeita ao romantismo ajambrado.

“Se eu fosse um blues, te mandava embora, se eu fosse um samba, esperava a aurora”, refina melodia e letra em parceria de Dante Ozzetti, com construção incomum de sentidos determinados pela emoção da música: do choro à valsa, da fuga de Sebastian Bach à Nona Sinfonia de Beethoven, reproduzida alusivamente à citação do verso.

O fraseado reto de “Duas Namoradas” de Itamar Assumpção e Alice Ruiz, serve-se no samba deslocado de Zélia Duncan, garantindo a hibridez proposta: “Tenho duas namoradas, a música e a poesia, que ocupam minhas noites, que acabam com meus dias”. Também o “Cedotardar” de Moacyr Albuquerque e Tom Zé alcança sublime vôo na voz bem acolchoada e no arranjo dramático, com progressão paulatina ao intencional clímax em bolero: “no mais horroroso castigo....te sigo!”. A poesia é preservada em sua integridade.

“Borboleta”, gerida em comunhão por Marcelo Jeneci, Arnaldo Antunes, Alice Ruiz e Zélia é ligeira e pop, e justifica-se pelo complemento da cantora: ‘um bando de marmanjo fazendo música de criança’. Um dos grandes momentos acontece à explanação em língua de sinais de “Todos os Verbos”, dedicada à fã semi-auditiva que buscou Zélia. Na procura de se abrir a esse universo tão sonoro quanto, a artista emociona em singeleza e doçura.

Na interpretação do “Tom do Amor”, nascida da descoberta do ‘diálogo de uma mãe ensinando as coisas importantes da vida à filha’, tudo em torno aconchega sutilezas, levezas, descompromissos e descontrações. Zélia flutua jardins de cores amenas, que não chegam a ser infantis, nem convidam à melancolia. É um contato que se interrompe, e o intervalo entre o espesso gesso e a liquidez da tinta é que moldura o quadro particular da cantora. Gotas que pingam devolvendo gestos, canções, palavras, afetos esquecidos em ambiente que se tornou cheio e duro. A composição é dividida com Paulinho Moska.

Sem esconder as ironias, Zélia canta uma desconhecida de Roberto Carlos, “I Love You”, e outra dedicada aos corações esperançosos, “Por isso corro demais”. Já no final, “Flores”, de Fred Martins e Marcelo Diniz combina poesia e energia na medida incerta pretendida: “Flores para quê? Flores para quando tu chegares, flores para quando tu chorares, uma dinâmica botânica de cores.” E o visual recebe mesmo duas flores artesanais.

O bis recheado de sucessos, “Catedral”, versão para música de Tanita Tikaram, e “Alma”, de Pepeu Gomes e Arnaldo Antunes, ganha coro ‘afinado’ da platéia, segundo a própria cantora e motivação elevada, fechando em altos tons as sonoridades decifradas em luzidias miniaturas.

Zélia não está se poupando, não deixa de ser enfática, destemida, apenas descobriu outra maneira de encarar a vida: sorrindo ao invés de gritando. Não escondida, mas aparecendo para quem quer ouvi-la. Não há nesse gesto a passividade, mas o saboreio de uma comida muito mais palatável ao devaneio de nuvens que tempestades.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no Jornal "Hoje em Dia" em 12/07/2011.

quarta-feira, 6 de julho de 2011



Prodígio já nasceu chorando. Não queria aquele nome. A mãe o chamou Aníbal. Os amigos o batizaram Moleque do Banjo.
Seria sempre Garoto, aonde quer que fosse, arrastava suas cordas mágicas. Diziam serem encantadas, aquelas mãos.
Saiu de São Paulo foi para o Rio de Janeiro. Depois, Estados Unidos.
Voltou à cidade que o acolheu, descansou o coração, nos preparativos de mais uma viagem. Levou consigo as cordas. Deixou delas, uma pequena amostra, suficiente para alentar lembranças e saudades recolhidas.

Amoroso

O pai de Garoto tocava guitarra portuguesa e violão. Do irmão Batista, também músico, o menino que já ensaiava num instrumento improvisado de pau e corda, ganhou o primeiro banjo. Desde cedo, integrou o “Regional dos Irmãos Armani”, com 11 anos, depois “Conjunto dos Sócios”, “Chorões Sertanejos”, “Conjunto Regional”, em substituição a Zé Carioca, “Rádio Educadora Paulista”, entre outros. Convites nunca lhe faltaram. Ao se apresentar com o violonista D. Montezano, conhecido como Serelepe, ao diretor artístico da Parlophon, foi imediatamente convidado a gravar um disco, contendo os maxixes “Bichinho de Queijo” e “Driblando”, de sua autoria, envergando o singular banjo. Mais tarde, iria unir suas cordas às de Zezinho, conhecido Aimoré, em infindáveis serenatas no bairro da Luz, e depois num conjunto de choro. E mais tarde ainda, iria compor “Amoroso”, em 1942, com a completude que lhe era específica.



Desvairada

Perambulando com suas cordas vibrantes, Garoto conheceu Petit, com quem formou ao lado de Aimoré, trio que se apresentava no salão nobre de um edifício em São Paulo, o Martinelli. Depois viajou com o último para o Paraná, a bordo da “Quarta Caravana Artística”, Porto Alegre, no “Cassino Farroupilha” e Buenos Aires, na Argentina, acompanhando Carlos Gardel em algumas músicas. No retorno a São Paulo, tomou posse de um violão-tenor para se apresentar com o seresteiro Silvio Caldas e o velho companheiro de viagem. Ainda na década de 30, gravou choros e valsas pela Columbia, demonstrando sua habilidade também na guitarra havaiana. Estreou na Rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro, e se encontrou com Carmen Miranda, Alvarenga e Ranchinho, Ary Barroso, Jararaca e Zé Formiga, Dorival Caymmi e Laurindo de Almeida, dando iniciativa, com este, à “Dupla do Ritmo Sincopado” e grupo “Cordas Quentes”. Isso após participar do “Conjunto Regional” da Rádio Cruzeiro do Sul em sua terra natal, desfazer a dupla com Aimoré e se casar, fixando-se na capital fluminense. Ao menos por algum tempo. Sua rotina “Desvairada” bem correspondia ao ritmo do choro de 1949.



Vamos acabar com o baile!

Incrivelmente, apesar do talento destacado, Garoto chegou a ficar algum tempo desempregado, com o fechamento da Rádio Cosmos. No entanto, a maior oportunidade da sua vida ainda estava por vir, quando recebeu um carta: “Querido Garoto, espero que você tenha gostado da idéia de vir para cá, e aceite-a, pois esta terra é a melhor do mundo, só você estando aqui é que acreditará. Estamos ansiosos para que você venha; eu e os rapazes.” A remetente era Carmen Miranda, que o chamava para substituir Ivo Astolfi no “Bando da Lua”. Resultado: rumou para os Estados Unidos, onde permaneceu por oitos meses na companhia da Pequena Notável, fazendo parte do conjunto e chamando a atenção naturalmente, pelo brilho de suas cordas. Teve a honradez de conhecer diversidades cidades, fazendo o que melhor sabia e gostava, atuar em filmes, e tocar até para o presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, na Casa Branca, tudo isso nos idos de 1939 e 1940. Tornou-se o “homem dos dedos de ouro”, nas palavras do organista Jesse Crawford. Já de volta ao Rio de Janeiro, compôs “Vamos acabar com o baile!”, com José Brandão, em 1952. Baile foi o que realizou em sua passagem em terras estrangeiras, mantendo boquiabertos até os mais exigentes.



São Paulo Quatrocentão

Finalmente afixado no Rio de Janeiro, criou o conjunto “Garoto e seus Garotos”, com Valdemar Reis, Poli e Almeida no violão, mais Russo do Pandeiro. Ao fim deste projeto, se encaminhou para a Rádio Nacional, se deparando por lá com a pianista Carolina Cardoso de Meneses, com quem gravou discos em dupla. Formaria também dupla com José Meneses, alternando guitarra, violão, violão-tenor e cavaquinho, durante os programas radiofônicos “Nada além de dois minutos”, “Ao som da viola” e “Um milhão de melodias”. Ainda por cima trabalhava na Orquestra da Rádio Nacional, regida por Radmés Gnatalli, de quem foi colega e legou eterna amizade. Mas seria em trio que conseguiria o maior sucesso da carreira, quando, em 1953, compôs o dobrado “São Paulo Quatrocentão”, para os festejos do aniversário da cidade natal, em companhia de Chiquinho do Acordeom e letra de Avaré. A composição virou verdadeira febre, com recordes de vendagem de disco (algo em torno de 700 cópias) e interpretação da inclusive cantora na época, Hebe Camargo, reconhecida posteriormente como apresentadora de TV.



Duas contas

Garoto estreou como letrista ao compor o samba-canção “Duas contas”, em 1953, antecipando a bossa nova. No mesmo ano, embeveceu os presentes com a interpretação solo do Concerto nº 2 para Violão e Orquestra, dedicado a ele por Radamés Gnatalli, em pleno Teatro Municipal do Rio. Mas a história que o levara a se atrever no mundo da escrita começara um ano antes, quando, a convite do diretor musical do programa da Rádio Nacional, “Música em Surdina”, Paulo Tapajós, topou se alinhar a Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeom naquele que ficaria conhecido como o “Trio Surdina”. Seguiram-se dois discos, e no primeiro deles vinha a música que comprovara seu atrevimento, sem rimas, levando o próprio autor dos versos à insegurança. Paulo Tapajós, que o incentivara, estava certo, a música correspondia a seu talento já comprovado como instrumentista, também na letra. E bastava: “teus olhos são duas contas pequeninas, qual duas pedras preciosas, que brilham mais que o luar”.



Gente humilde

A gravação de “Gente humilde” aconteceu informalmente, quase por acaso, como presente a um amigo querido de Garoto, o professor mineiro Valter Souto. Num acetato simples, eternizou-se o momento de inspiração que recaiu divino, com a espontaneidade que acalora os corações de artistas. A cena observada passaria incólume, não tivessem aquelas mãos o poder de restringir às cordas a leveza de um sentimento inalcançado. Afinal o poeta vê a árvore e se encanta por ela, e nos encanta com sua poesia. A mesma árvore que vemos todos os dias. Com auxílio de Vinicius e Moraes e Chico Buarque, a canção abraçou em 1970 versos que Garoto não disse, mas zumbiu.

“Comecei a tocar sozinho, e com o falecido Pinheirinho Barreto e Aluisio Silva formamos um novo grupo. Foi quando gravamos ‘Zombando da Morte’, um samba que se tornou muito popular.” Garoto



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 10/07/2011.

sexta-feira, 1 de julho de 2011




Quem foi, afinal de contas, Wilson Batista? O homem por trás de sucessos que pouco colocou a voz para ser ouvida em disco? O profícuo compositor, do interior do Rio de Janeiro, que fez carreira como galante dos bares da Lapa e da Esquina do Pecado? O rival de Noel Rosa, com quem alimentou polêmica acima de conceituações musicais? Ou mesmo malandro de terno branco e navalha no bolso? Nenhuma dessas hipóteses corresponde inteiramente ao caráter do autor de “Emília”, “Bonde de São Januário”, “Mundo de Zinco”, “Acertei no Milhar”, “Balzaquiana”. Para se entender melhor Wilson Batista é preciso ir ao encontro de sua origem: acendedor de lampiões. Que com pedras batidas fez o fogo de sua existência. E ao encontro de personagens memoráveis, os percebeu lampiões. Disso, chamou depois samba.



Lenço no pescoço

Embora tenha ficado com a vilania na disputa, por posteriores respostas menos inspiradas, Wilson Batista foi primeiramente provocado por Noel Rosa, que questionou a pose de malandro do garoto de Campos instalado no Rio de Janeiro. “Lenço no pescoço”, composto em 1933, exibe o modo de vida que Wilson acalentava para si. Além disso, denuncia a dificuldade do trabalhador honesto para se sustentar, como justificativa de sua posição ‘à la malandragem’. Por fim, há a menção à forma como eram vistos os compositores populares na época, através da frase: “eu sou vadio porque tive inclinação, no meu tempo de criança tirava samba-canção.” A música foi lançada por Silvio Caldas, com sua peculiar bossa. Dois anos depois, Wilson e Noel Rosa compuseram juntos, o samba “Deixa de ser convencida”, que permaneceu inédita até o registro de Cristina Buarque, em 2000.



Inimigo do batente

Wilson não se acanhava em tirar um sarro de quem lhe cruzasse o caminho. Tinha por hábito se intitular “Cabo”, e requerer ajuda aos outros com o seguinte maneirismo: “Tem um dinheirinho aí, major?”. Esses trejeitos salientes eram utilizados com muito brio para inspirar seus sambas, num deles, “Inimigo do batente”, de 1939, em parceria com o amigo português Germano Augusto, Wilson Batista tripudia sem dó em cima daqueles que duvidavam de seus talentos artísticos, ironizando a fala da mulher: “Ele dá muita sorte, é moreno, é mesmo um atleta, mas tem um grande defeito, ele diz que é poeta”, como quem diz: vá arrumar trabalho de verdade. Ao que este responde: quem pode, pode, major.



A mulher que eu gosto

Filho de um funcionário da guarda municipal e sobrinho de um maestro de banda, a “Lira de Apolo”, na qual estreou tocando triângulo, Wilson Batista viveu avesso á legalidade, mas não se fez de rogado sobre a herança musical. As duas influências o perseguiram durante a vida, rebelde em relação à primeira, convicto com a segunda. Chegado dos irmãos Meira, malandros famosos da Lapa, Wilson sempre cultivou em seu círculo de amizades, subversivos da ordem vigente. Algumas prisões lhe rechearam o currículo, e foram acrescentadas às suas composições temáticas controversas para a época. Parceiro de vários sambistas, Wilson Batista compôs com Ciro de Sousa em 1941, “A mulher que eu gosto”, na qual reclama da deslealdade de um amigo.



Preconceito

Wilson Batista teve sua primeira música lançada por Araci Cortes, composta quando ele tinha 16 anos. Depois, seguiram-se gravações de nomes recorrentes da época: Luís Barbosa, Almirante e Francisco Alves, Castro Barbosa e Murilo Caldas juntos, no sucesso “Desacato”, denotando seu crescente prestígio. Em 1941, o “Cantor das Multidões”, Orlando Silva, lançou “Preconceito”, parceria com Marino Pinto, depois regravada por João Gilberto. Como na letra da música, em que um apaixonado rapaz pobre se vê instigado a conquistar o coração de uma moça rica, as fronteiras, sempre presentes, acenavam trégua quando se ouvia samba, (“meu samba vai, diz a ela, que o coração não tem cor”) responsável pela aproximação entre os grandes cantores do período e os compositores populares, relegados, via de regra, a um segundo plano. Além disso, estampa-se o preconceito racial marcante.



Emília

No afamado Café Nice, Wilson Batista conheceu Erasmo Silva, com quem arquitetou conjunto com as presenças de Lauro Paiva ao piano e Roberto Moreno na percussão. Com a desfeita, permaneceram somente os dois primeiros, que passaram a se intitular “Dupla Verde e Amarelo”, participando, inclusive, de espetáculos na Argentina, Porto Alegre e apresentações em São Paulo. Tempos depois, Wilson Batista escreveu com Haroldo Lobo música que versava sobre uma união desejosa de soberania. Um oportuno “café preparado” simbolizava a perfeição exaltada. Lançada por Vassourinha em 1942, foi regravada por Roberto Silva, com sucesso semelhante. Se encontrasse “Emília”, Wilson, certamente, cairia a seus pés de amor.



Meus vinte anos

O samba “Meus vinte anos” revela a amargura que a nostalgia pode abarcar. Composto em 1942, em parceria com Silvio Caldas, que o lançou, Wilson Batista se vale da rejeição das mulheres para constatar o triste passar do tempo. A isso, se assemelham valores medíocres, artificiais, propagados pela cultura do consumo estético. Sem notar que o tempo, grande juiz da vida, exulta o que lhe é preservado, e se vai com o resto. “Ai eu daria tudo, para poder voltar aos meus vinte anos”, entoam versos tristes.

Louco (Ela é seu mundo)

Era notória nos arredores da Lapa, a fama de conquistador de Wilson Batista. Apesar disso, ele fixou residência no amor, ao se casar com Marina Batista e ter com ela dois filhos. No samba de 1943, “Louco (Ela é seu mundo)”, em parceria com Henrique de Almeida, Wilson apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do homem. Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma bela letra, que acompanha os passos sem rumo. Lançada por Orlando Silva, ganhou regravação de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia, João Nogueira, Noite Ilustrada, Joyce, Cristina Buarque, Aracy de Almeida, João Gilberto, Elza Soares e diversos outros, reafirmando a qualidade de permanência da música.



Diagnóstico

No final da vida, Wilson Batista compôs em homenagem ao beliscador de cordas, Nelson Cavaquinho, um dos grandes nomes de Mangueira, à qual também dedicou muitas músicas. No samba de 1943, “Diagnóstico”, em parceria com Germano Augusto, Wilson esnoba a pompa da medicina, ambicionada em oferecer soluções totalizantes, e rememora os desavisados: “não há remédio pra curar uma saudade”. Se fosse feito um exame no coração de Wilson, estaria constatado: sambista incurável.

Mulato calado

“Mulato calado” estranhamente consta como sendo de autoria de Benjamim e Marina Batista, esposa de Wilson. Tendo sido inclusive registrada por seu verdadeiro autor, além de Aracy de Almeida e Adriana Calcanhotto, entre outros, o samba retrata uma história dramática que exemplifica a realidade dos morros cariocas, ainda na década de 40. Revivida por Clementina de Jesus 30 anos depois de seu lançamento, em 1977, apresenta integralmente personagens complexos do cotidiano brasileiro, acostumados a conviver com vida e morte na mesma sentença. “Vocês estão vendo aquele mulato calado, com o violão do lado, já matou um, já matou um...”



Chico Brito

As margens sempre interessaram a Wilson Batista, por ser ele próprio, parte integrante delas. Por isso em seus sambas retratam-se comportamentos dos ditos inadequados, de gente simples, posta de canto. “Chico Brito”, de 1949, em parceria com Afonso Teixeira, é o herói dos pequenos que se deteriora em razão de maus tratos. Afinal “se o homem nasceu bom, e não se conservou, a culpa é da sociedade que o transformou.” Não por acaso, é feita a primeira referência à maconha na música brasileira. Registrada por seu autor, foi lançada por Dircinha Batista, e regravada por Paulinho da Viola.

Mãe solteira

Wilson Batista nunca teve vergonha ou medo de abraçar os temas mais ásperos, ou seja, nunca mascarou a realidade. Talvez, por isso, a tragédia se insurja tão naturalmente e viva em suas músicas. O drama da Maria que ateia fogo às próprias vestes anuncia a hipocrisia de uma sociedade preconceituosa que se não capaz de uma violência física, pratica-a de maneira ainda assim massacrante. Composto em 1954 em parceria com Jorge de Castro, avisa no enunciado: “Hoje não tem ensaio, na escola de samba, o morro está triste, e o pandeiro calado.”



Nega Luzia

Há na música de Wilson Batista o fogo de seus personagens, reluzentes lampiões. Ele que em sua mocidade pretendeu tornar-se marceneiro enquanto compunha versos para os bandos dos quais participava. E que depois trabalhou como eletricista e ajudante de contra-regra no Teatro Recreio, para assim se aproximar das grandes estrelas. E foi por essas curvas, que fez parte da Orquestra de Romeu Malagueta, sendo crooner e tocando pandeiro. Embora só soubesse tocar caixinha de fósforos e demonstrasse dificuldade para escrever. Encontrou todo tipo de gente, do elegante Ataulfo Alves, ao pilantra Germano Augusto, bicheiro, conhecido como China, para quem vendeu muitos sambas. E foram esses sambas que cravaram o nome de Wilson Batista em lugar de destaque, flamenguista assumido, boêmio orgulhoso. Afinal como a “Nega Luzia” do samba de 1957, em parceria com Jorge de Castro, Wilson botou fogo no morro, na música brasileira, sem receber Nero, mas presenças até mais ilustres. Despediu-se em 1968, apenas ao parcial. Melodias e versos propagam-se infinitamente.

“Ganha-se pouco, mas é divertido” Wilson Batista



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 03/07/2011.

segunda-feira, 27 de junho de 2011




O mote é samba. Mas o sotaque é de Calcanhotto. Em álbum recheado de dedicatórias, Adriana não presta homenagem. Isso porque recusa a nostalgia para apresentar salutares desvios nos quais ambienta suas composições, com coloquial destreza para o inusitado.

Um dos que recebe menção honrosa na contracapa do disco é Jards Macalé, outro iconoclasta da canção brasileira. Aliado a ele vem Lupicínio Rodrigues, chamado tão intimamente de “lupi” que merece registro a maneira descompromissada com que Adriana se enverga do “micróbio do samba” dito pelo inventor da dor-de-cotovelo para dar nome à 12ª obra de sua carreira fonográfica (exceção à coletânea “Essencial” lançada em 2010).

Acompanhada em todas as faixas por Alberto Continentino no contrabaixo e Domenico Lancellotti na bateria e percussão (por vezes invertendo a ordem – ou seja – percussiva bateria e batida percussivista), Adriana começa sua saga rumo ao ritmo surpreendendo, como lhe é de seu fetiche nada usual em tempos demasiado óbvios.

Quem procura o tal micróbio do samba precisará de refinada lupa para encontrá-lo. Sim, pois os instrumentos presentes no álbum são tão inesperados quanto usar uma lupa para encontrar micróbio. E soam, além de criativos, agradáveis, dispensando a invencionice barata de grupos indie saídos em última fornada. A se notar o fato de que o som base é comandado por instrumentos elétricos tão rechaçados em ‘tempos idos’ (diria Cartola), sob a pretensão de defesa das raízes analógicas aqui instauradas pela miséria do povo.

Não se exclui o novo para abrigar o antigo. A riqueza com que Adriana desperta os olhares, ouvidos e gestos de sua matéria-prima é notável. Adriana lida poesia. Retira de cada sonoridade e palavra tudo o que podem oferecer em largueza e amplitude. Os sentidos deitam-se abertos ao deleite individual. Na primeira faixa, “eu vivo a sorrir” (assim grafadas minúsculas todas as palavras do disco), há exemplos que se cruzam soltos, envoltos pela atmosfera típica do samba (fadado fado; acaso caso). O que passará desapercebido por aqueles comprometidos com as verdades estáticas de uma vida mais maleável do que se lhes apresenta. Sem fazer pouco caso, Adriana e um de seus comparsas riem ao final.

“aquele plano para me esquecer”, brinca com contrastes, novamente: seu plano para me esquecer, esqueça, vaticina. E comporta a beleza rítmica do samba, sob os toques de um piano velejado aos dedos irreverentes de Calcanhotto. O clima revanchista e rancoroso, presente na terceira faixa, enclausura com propriedade a guitarra vertiginosa tocada por Adriana. “pode se remoer”, expõe no título do que se trata. E ainda remodela palavras, mantendo a sonoridade e o sentido primordial, como no caso de ajuizar/ajoelhar substituídas uma pela outra em versos, de resto, idênticos.

“mais perfumado”, oferecida à Thaís Gulin, enaltece o amor incondicional que se sujeita a provações inaceitáveis para muitos. O homem que trai é temática comum no mundo do samba, a mulher que mais do que desconfia, sabe, é mérito da lavra de Adriana. A música conta ainda com a “luxuosa”, como destacada pela própria cantora no encarte, participação de Davi Moraes e sua viola morna, que inaugura o sentir buliçoso do álbum.



“beijo sem”, já lançada com sucesso por Marisa Monte, e oferecida para ela mesma, põe à prova o canto narrativo e lento de Calcanhotto, como a sombrear palavras e requerer sons. É também faixa mais expansiva e menos interiorizada que as anteriores, abrilhantando o mosaico (como a obra de Leonílson – “Puros e duros – Ouro de artista – Ilusões”).

“já reparô?” permanece no tom da mulher que se coloca em primeiro plano, e ao invés de lamentar, se vangloria e provoca: a sua nova namorada, querida, pode ser linda e safa, (...) porte de gazela, olho de leoa, ser muito versada e hábil com a língua, do tipo que domina idiomas, mas ela não samba...”. E frases de conotação determinista: “o amor é o hiperquântico, e eu devo lhe fazer falta numa dada hora”. A ironia se estabelece, sem fazer concessões. Rodrigo Amarante pontilha generosamente solos de guitarra.

Outra canção com título questionador “vai saber?”, lançada e oferecida para Mart’nália, marca o ponto do disco em que o samba se esgueira com mais focinho tradicional. A se reparar o fato de Adriana tocar cuíca nessa faixa e caixa de fósforos na seguinte, “vem ver”. Numa, o rejeitado que sente raiva e ameaça o troco, noutra, o mesmo personagem, com a promessa de fazer de tudo para reconquistar o tal amor (perdido ou encontrado).

O chorístico cavaquinho de Davi Moraes, introduz a seara carnavalesca iniciada com “tão chic”, onde a sutil pronúncia de Adriana tem papel fundamental para a percepção da diferença em versos “si” e “se”. Nessa música, um exercício de cinismo com a eternidade, do “amor eterno até a quarta-feira”, sinalizando tom debochado com relação à festa. Na seguinte, “deixa, gueixa”, uma alegria exaltante em ritmo de bandeja de chá tocada por Adriana, em alusão ao objeto referido na letra. Com sagacidade, a faixa ganha coro de bloco e torna mais intimista a música, que vai do Ocidente ao Leme, dedicada para Hiromi.

No fim, “você disse não lembrar” é sensível composição bem aclimatada ao tempero tradicional do samba, enriquecida por toques de faca e prato de Moreno Veloso, que traça um caso de amor quase desfeito. “tá na minha hora” sinaliza o intento da autora dos versos, como síntese do trabalho feito: “despi as suas fantasias devagarinho, da sua onipotência tratei com jeitinho, e das chegadas de madrugada, no sapatinho, agora tá na minha hora...”.

E despede-se, erguendo a bandeira de sua Estação Primeira de Mangueira, inspiração para as cores que se destacam na belíssima capa do disco, via arte de Luiz Zerbini, Fernanda Villa-Lobos e Caroline Bittencourt. A “moça dos agudos de cristal”, que despertou o fascínio do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu em 1989, segue sua sina quebradiça de pérolas e diamantes. Com caminho livre para os rubis, em meio às pedras.



Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 05/07/2011.

domingo, 26 de junho de 2011

Músico demonstra carinho e admiração por artistas marginalizados




“Eu sou nada e é isso que me convém, eu sou o sub do mundo, o que será, o que será, que me detém?”. Lobão sempre marcou território como contraponto do panorama nacional e invariavelmente se insurge contra vozes totalizantes. Os versos de El Desdichado II servem como pequena amostra desse papel fundamental em que o artista atua. Especialmente numa sociedade cada vez mais preocupada em fechar sentidos e definir padrões de experiência estética superiores. Para atender ou quebrar as expectativas, o músico concedeu entrevista durante noite de autógrafos na livraria FNAC, e foi só elogios a nomes esquecidos pela grande mídia e estimados por ele. A lenda de que o temido lobo não compreende afagos desfez-se como um novelo mal tricotado.

R.: Como foi a história do violoncelo que você deu de presente ao Jards Macalé? Ele contou que vocês se encontraram no Baixo Leblon de madrugada e 8 meses depois chegou encomenda do ‘senhor Lobão’.
A história é mais complicada. Ela começa em 95. O Jards queria aprender a tocar violoncelo e eu tinha um. Aí fomos para o meu apartamento, eu morava no 18º andar e acabou a luz. Isso impossibilitou que a gente tocasse. Então a gente sempre se encontrava no show do Paulinho da Viola e tocava no assunto. Até que eu me mudei para um apartamento menor e aquele violoncelo virou um ‘trambolho’ dentro de casa. Liguei para o Jards, falei: ‘você quer aprender a tocar?’. Ele disse que queria. Inclusive não sei como acaba a história. Se ele está tocando ainda.

R.: Ele me contou que pegou uma tendinite e acabou doando para uma amiga que dá aula de música no Complexo do Alemão.
(Risos) eu sabia que isso ia acontecer. Macalé é uma figura admirável. Por quem eu tenho muito carinho. É um gênio. E muito engraçado. Deprimido e engraçado. Igual a mim. A gente vai fazer muita coisa junto ainda. Naquele momento, ele queria estudar violoncelo e eu violão clássico. Ele toca um violão sensacional, então eu mostrava o que aprendia de Villa Lobos. É um intercâmbio maravilhoso.

R.: Fale um pouco sobre o Sérgio Sampaio.
Sérgio Sampaio foi uma vítima da Tropicália. Ele, assim como o Tom Zé e o Jards Macalé foram bypassados pela famosa ‘máfia do dendê’. O Macalé produziu o melhor disco do Caetano Veloso (Transa) e não recebeu os créditos. A partir dali, ficou isolado da música brasileira. Isso aconteceu com o próprio Sérgio Sampaio, o Raul Seixas e todo mundo que não entrou naquela onda. Todo mundo que era mais ou menos legal desapareceu. Ficou Gil e Caetano.

R.: Como foi seu encontro com o Paulinho da Viola?
Paulinho da Viola é uma das pessoas mais delicadas que eu conheci. Frequentei a casa dele na época do (álbum) ‘Nostalgia da Modernidade’, para mostrar umas composições minhas. Ele ouviu o CD atentamente 3 vezes, com uma minúcia impressionante. No final ele disse que eu estava cantando mais suave, elogiou minhas músicas, que nunca imaginaria fazer samba daquele jeito. Mas pediu para que eu não abandonasse o rock, que ele também gostava muito. Um dos caras que você tem a impressão de ser mais tradicional, com essa percepção ampla. Paulinho da Viola é um privilégio raro.

R.: E com o Nelson Gonçalves?
Nelson Gonçalves virou meu parceiro, meu brother, meu irmão. Um cara totalmente rock´n´roll, que eu chamava de senhor e recebia xingamento em troca. Fiz uma música para ele que gravamos juntos, ‘A Deusa do Amor’, inspirada no repertório passional que ele interpretava. Ele chegou a me chamar de filho algumas vezes (risos).

R.: Sua autobiografia, ’50 anos a mil’, escrita em parceria com o Cláudio Tognolli, inicia-se com o episódio do enterro do Júlio Barroso em que você e Cazuza se viram órfãos. Fale um pouco sobre o Cazuza.
Eu era o melhor amigo do Cazuza. Mas ele foi vítima do próprio amor da família. Ele morreu e a família quis transformá-lo numa coisa MPB. Aí ficou nem barro nem tijolo. Higienizaram a obra dele. Eu brincava com ele, ‘tu vai morrer duas vezes, porque quem vai escrever o prefácio da sua biografia vai ser o Caetano Veloso’. Não deu outra. Se você perceber, o Caetano exalta o Cazuza como um cara muito bom daquela época, dos anos 80. É como elogiar os ombros do Paulo Ricardo. O Paulo Ricardo toca bem contrabaixo, canta bem, tudo bem. Mas os ombros são maravilhosos. Então ele é muito cruel, nesse ponto. Eu falava, ‘Cazuza a gente precisava ter uma ruptura’. Mas ele gostava muito de Dolores Duran, samba-canção, música brasileira, então ficou meio na dúvida em dar aquele salto.

R.: Para finalizar, Júlio Barroso?
Uma pessoa das quais eu sinto mais falta. Eu anuncio com a morte do Júlio Barroso, em julho de 1984, o fim do rock nacional. Isso tudo está no livro.

Livro: Lobão – 50 Anos A Mil
Autor: Lobão com Cláudio Tognolli
Editora: Nova Fronteira
Preço médio: R$35




Raphael Vidigal Aroeira

Publicado no jornal "Hoje em Dia" em 25/06/2011.

quarta-feira, 22 de junho de 2011




Você já ouviu a voz que toma corpo? Da favela vem magra, faminta, intacta e assim permanece. Carrega a cabeça uma lata d’água e nas mãos uma prece, que se estende aos quadris da mulata assanhada, sobe pelas paredes. E alcança no céu um Ary Barroso e um Louis Armstrong. É a mistura sem jeito, sem tato, aos barrancos, mancando ao sapato um tamanco de barro, suor e pilão. Chame de bossa negra, suingue, jazz, funk ou samba na avenida. Ela apenas destila o que chama de corpo é a voz que arrepia: Elza Soares da vida, patrimônio mal resolvido num país de descidas, sucata e música aborígene.



Se acaso você chegasse

Escrito por Lupicínio Rodrigues em parceria com Felisberto Martins em 1938, o samba “Se acaso você chegasse” fez sucesso com Ciro Monteiro. Na estréia em disco de Elza Soares, no ano de 1959, a peça ganhou o contorno da voz jazzística da cantora, substituindo frases do refrão por sonetos sonoros que deixam no ar a real intenção dos personagens. À história de amor desfeito e amizade posta sob perigo de Lupicínio Rodrigues, Elza adentrou com intimidade e atrevimento, sem perder a dor-de-cotovelo.



Mulata Assanhada

Ary Barroso determinou em 1950 que o maior compositor popular brasileiro era seu conterrâneo mineiro, Ataulfo Alves. Seis anos depois, o prestigiado sambista lançou obra prima de sua autoria, outra delas, “Mulata Assanhada”. Lançada por Elizeth Cardoso, a canção corre no tempo esperto e sinuoso das curvas da mulata em questão. Regravada em 1960, sem demérito nenhum para a primeira gravação, pela personificante Elza Soares, tornou-se emblema de sua figura: “Ô mulata assanhada, que passa com graça, fazendo pirraça, fingindo inocente, tirando o sossego da gente.” A incorreção política de Ataulfo aparece ao recorrer aos provocantes versos: “Ah mulata se eu pudesse, e se meu dinheiro desse, eu te dava sem pensar, essa terra, esse céu, esse mar. Ela finge que não sabe que tem feitiço no olhar. Ai meu Deus, que bom seria, se voltasse a escravidão, eu comprava essa mulata e prendia no meu coração, e depois a pretoria é que resolvia a questão!”



Estatutos de Gafieira

A menina Elza da Conceição Soares, casou-se, obrigada pelo pai aos 12 anos de idade, com um menino de 17. Mãe aos 13, viúva aos 18 anos, viu a vida precoce deslizar no asfalto. Soube manter a pose e equilibrar-se no morro, apreciada em sua imaturidade pelos “Estatutos da Gafieira”. Retirando deles a melodia para superar as adversidades, Elza Soares, já nascida cantora e desde sempre acalentada por seu canto rompedor, regravou em 1966 o samba dançante e esquio de Billy Blanco, conferindo a ele sua pulsação singular. Como diz a biografia da cantora lançada em 1997, escrita por José Louzeiro, é Elza “cantando para não enlouquecer”.

Salve a Mocidade

Elza Soares sempre puxou pela força do canto as barreiras que tentaram derrubá-la. Cantou o samba de carnaval de Luiz Reis, escrito em 1975, exaltando a escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Mas também o que existe de “mais quente”, o povo e sua festa, sendo ela mesma, o carnaval na essência, superando toda quarta-feira que foi cinza em sua vida. Ansiando a folia.



Edmundo – versão de In The Mood

Aloysio de Oliveira aproveitou-se de uma interpretação vocal para transformar o sucesso americano de Glen Miller, composto por Joe Garland e Andy Razaf, In The Mood, no sucesso brasileiro de proporção internacional, “Edmundo”, em que se vale das trapalhadas de seu protagonista. Lançada por seu “Bando da Lua” em companhia de Carmen Miranda em 1954, a música recebeu regravação de Elza Soares e entrou para a galeria de estouros de seu repertório. Sem perder o requebrado e o bom humor, Elza mantém a forma ao interpretar diversas mancadas e peripécias no universo musical em que ressoa a vida.

Devagar com a louça

Elza Soares viveu um tórrido romance com Mané Garrincha que lhe valeu muita tristeza e também muita felicidade. O filho do casal, Garrinchinha, morreu em acidente automobilístico em 1986, abalando muito a cantora, que já havia perdido filho para a fome. No entanto, Elza soube superar as agruras que lhe foram impostas, e “devagar com a louça”, recuperou seu terreno. A voz acoplada à melodia que lhe é impregnada pelo timbre aguçado e intransferível marca a releitura da cantora no samba composto em 1963 por Haroldo Barbosa e Luiz Reis: “Devagar com a louça que eu conheço a moça vai devagar...”



Boato

O violão paterno e os ouvidos grudados no rádio deram à Elza Soares a oportunidade de conhecer Noel Rosa, Geraldo Pereira e Ary Barroso, que lhe abriu as portas pessoalmente para o estrelato, depois de zombar de sua roupa e arrepender-se, mesmo que veladamente, nomeando aquela menina humilde e tempestuosa de estrela. Interpretada com a avidez de sempre, Elza Soares soube dar ritmo certo ao samba de 1961 de João Roberto Kelly, “Boato”, em que sua voz alerta triste os infortúnios sombrios do ilusionismo.

Beija-me

A pitada de jazz que Elza Soares acrescenta ao samba que pratica é que garante a autenticidade sonora de seus retumbantes graves, agudos e tudo mais que endossa sua voz inigualável. Sejam rasgadas as interpretações, ou disfarçadas sob a fantasia de um véu macio, a música espalha-se em Elza Soares ao deleite de desvios maternos, femininos, vorazes. “Beija-me”, samba de 1943 de autoria de Roberto Martins e Mário Rossi, sucesso de Ciro Monteiro, é um convite irrecusável, feito pela cantora do milênio, segundo a BBC de Londres. Gravado por Elza Soares em 1961. “Beija-me, deixa o teu rosto coladinho ao meu...”



Língua

Houve quem quisesse destruir Elza Soares (policiais covardes, jornais sensacionalistas), sem perceber que estímulos sonoros são inquebrantáveis. Qual então a força do canto que remete aos primórdios do haver humano, e mais ainda, bulido à margem do trompete de metal que se ergue aos ombros de quem sassarica sem vergonha de tentar ser feliz. Tudo através da música que rege a vida. A onda sonora que abate oportunistas desventurados no caminho da rainha de argila, feita de água e terra, com a verdade que compreende conquistas. Por isso a “Língua” de Elza Soares soa tão afiada e corta como lâmina quem a quiser corrompê-la de hipocrisia. Aos prazeres modestos, sem a imoralidade insólita, ela se derrete, sem medo. E junta sua língua à de Caetano Veloso, em 1984, rap esperto e afinado. Um ano depois, gravou disco produzido por Caetano e Lobão.



Malandro

A música de Elza Soares, tal qual a perfeita expressão da personalidade, combina rítmica, harmonia, melodia e letras bem trabalhadas, embelezadas por seu canto instigante e bardo, nas mais altas prateleiras da atemporalidade. “Malandro”, samba de 1976, foi lançado por Elza Soares junto com o compositor Jorge Aragão, que divide a autoria da música com Jotabê. Os versos relatam um aviso de que o amor representa perigo. Mas vale o risco, tão bem ritmados por Elza Soares.

O Mundo Encantado de Monteiro Lobato

Em 1967, a pioneira Elza Soares tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na avenida, com “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato”, de autoria de Batista e Darcy da Mangueira, Hélio Turco, Jurandir, Luiz e Dico. A relutância em ser precoce não infringiu à Elza a fuga de seu destino. Tudo lhe veio cedo, lhe foi cedo, muito permaneceu. Por exemplo, o canto, a vontade, a luta cotidiana contra o infortúnio, a certeza da alegria. Como diz o bloco criado por ela própria, “Deu a Elza” na avenida!



Dor de cotovelo

No renovador álbum na carreira discográfica de Elza Soares, “Do cóccix até o pescoço”, lançado em 2002, a cantora gravou um samba-canção magnífico de Caetano Veloso, em que ressalta com toda sua voz vitimada por carinhos e torturas as malícias de um relacionamento complicado, tardio, enfim, desfeito por artimanha do ciúme. “O ciúme dói nos cotovelos, na raiz dos cabelos, gela a sola dos pés...”

Palmas no portão

Em 1967 Elza Soares iniciou parceria com o cantor Miltinho que acabou por render 3 antológicos discos, combinando o suingue da cantora e a apurada noção rítmica do colega. Mais tarde, em 1972, bancou parceria com o iniciante Roberto Ribeiro, que provaria que seu faro para descobrir talentos estava certo. Mas é de 1967 a composição “Palmas no portão”, de Valter Dionísio e D’Acri Luiz. Elza abusa no samba de sua privilegiada voz sinuosa, e reclama de saudade: “Ôôôôô há mais de uma semana que eu não vejo meu amor...”

Pranto Livre

“d’O pranto que é privilégio de quem sabe amar”. Elza ama, amou, amará. Essa é sua verdade. Que perpassa aos berros melodiosos, ritmados, harmônicos de uma voz que exulta infinita a beleza que há em cantar, cantar, cantar...ouvir Elza Soares. “Pranto Livre”, samba-canção de 1974, de Eduardo da Viole e Dida, liberta a melancolia para que sobre ela se aviste a dor, apinhada de busca da felicidade.

"Se não fosse cantora, seria prostituta" Elza Soares



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 26/06/2011.

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