segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011




Carmen Miranda e Aracy de Almeida enchem a cabeça da menina que enche garrafas de vinho. Logo ela está cantando em auditórios, rádios e discos. A Personalíssima Isaurinha Garcia não esqueceu as influências, mas legou identidade própria para a posteridade. Uma cantora de timbre refinado e interpretação emocionada. Com seu jeito próprio de cantar e emocionar. Isaura Garcia é Isaura Garcia, para quem se aproxima de sua melodia, logo já é Isaurinha.

Um imbatível sucesso de Isaura Garcia foi o samba “Mensagem”, de Aldo Cabral e Cícero Nunes, lançado em 1946. No enredo, a história de uma mulher que recebe do carteiro o alento de um antigo amor. “Quanta verdade tristonha, a mentira risonha, que uma carta nos traz, e assim pensando rasguei, tua carta e queimei, para não sofrer demais”, diziam os versos finais da canção que poderiam servir de fundo para o atribulado romance que a cantora viria a ter com o pianista e organista Walter Wanderley na década de 50.



Camisa listrada

Aos 19 anos, Isaurinha Garcia ganhou o primeiro lugar de um concurso de calouros promovido pelo programa Clube Quá-Quá-Quarenta, em que cantava “Camisa Listrada” de Assis Valente. Na música é possível perceber o desespero da mulher que vê o seu homem desfilar na avenida vestindo suas roupas, sua saia e sua combinação. A música é uma combinação entre alegria e tristeza, e mostra de forma debochada e simples o contraste entre a fantasia do homem que sai para se divertir e a preocupação da mulher que assiste àquilo com ares de repreensão.



De conversa em conversa

Lúcio Alves era ainda um garoto quando musicou aos 16 anos “De conversa em conversa”, com letra de Haroldo Barbosa. O samba impressionou Isaura Garcia, que resolveu regravá-lo com o mesmo conjunto que acompanhou Lúcio, “Os Namorados da Lua”, do qual o cantor fazia parte. Em 1947, a personalíssima emplacava mais um sucesso, e dali a 6 anos, em 1953 era eleita a Primeira Rainha do Rádio Paulista, configurando-se como ícone da cidade.

Teleco-teco

Um samba de 1942 de letra inspirada, levada gostosa e espírito carnavalesco foi “Teleco-teco”, de Murilo Caldas e Marino Pinto que Isaurinha Garcia cantou com deliciosa interpretação. A música faz referência a um grande sucesso da época, “Praça Onze”, de Herivelto Martins e Grande Otelo, e reflete o desgosto da mulher que não se contenta com as estripulias do marido no carnaval, mas depois de um carinho não resiste a seus encantos.

E daí?

Em 1959 a bossa nova ganhava espaço de vez no cenário brasileiro, e uma das primeiras músicas do gênero foi composta por Miguel Gustavo, com o título de “E daí?”. A temática era um amor proibido que se fortalecia diante das dificuldades impostas. Isaura Garcia a lançava 20 anos depois de ser contratada pela Rádio Record e formar dupla com Vassourinha, um mulato cheio de bossa que se foi cedo para um outro mundo.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 27/02/2011.




“Vamos voltar à pilantragem!” anuncia a voz cheia de bossa e suingue estonteante do porte de um negro com bandana na cabeça e reverência à Martin Luther King. Ele rege o coro da platéia enquanto sua presença move multidões com “Meu limão, meu limoeiro”. Que poder é esse do homem chamado Simonal? É o poder da música. Do canto belo. Simonal é pura música, canto belo.



Sá Marina

A música brasileira procurava juntar influências no meio da década de 60, e foi com essa idéia que Antônio Adolfo compôs com Tibério Gaspar a “toada-moderna”, segundo ele, “Sá Marina”, estouro na voz de Wilson Simonal em 1968, ficando com o posto de primeiro lugar nas paradas por 19 semanas seguidas. A união de bossa nova, toada e iê iê iê surtiu o efeito esperado, Sá Marina subiu a ladeira para não descer mais.



Mamãe passou açúcar em mim

Sem vergonha de utilizar métodos artificiais para promover seus objetivos, o Gordo, apelido de Carlos Imperial por sua postura corpulenta e despachada no comando de seus programas de TV ou no cinema, teve fundamental importância na criação do chamado rock jovem na música brasileira, que mais tarde ele rebatizaria de “pilantragem”. Depois de tentar lançar sem sucesso o ícone da Jovem Guarda que viria a ser Roberto Carlos e de participar da produção do primeiro álbum de Elis Regina, posta para rivalizar com Celly Campelo, Imperial viu no mulato Wilson Simonal sua mina de ouro descoberta. Foi pensando nele que o apresentador, cantor e agitador cultural mais aplaudido e vaiado nos anos 60, compôs a convencida “Mamãe passou açúcar em mim”, em 1966: “Eu era neném, não tinha talco, mamãe passou açúcar em mim, mamãe passou açúcar em mim”

Vesti azul

Wilson Simonal era segundo Luís Carlos Mielle, “o maior cantor do Brasil”, e isso na década de 60 era inegável de se contestar. Não à toa ele comandava programas de TV, a exemplo do “Show em Si Monal” na Record e era frequentemente líder de vendas de discos. Foi por essa época, em 1968, que ele gravou uma canção de Nonato Buzar chamada “Vesti Azul”, cantada no mesmo ano com o nome de “Anjo Azul” pela cantora mirim Adriana, de apenas 14 anos. A versão de Simonal, como não poderia deixar de ser, chamou bem mais atenção.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 27/02/2011.




Maria Creuza dos olhos fundos, brasileira, baiana, filha da poesia, querida do Poetinha. Romântica, abusada, nunca reprimida pela força do cantar que ultrapassa barreiras ideológicas, territoriais e de gênero. Maria Creuza na Esplanada, sonora. Maria Creuza, cantora. Não extingue admiração, há encantamento.

Você abusou

Maria Creuza conheceu Antônio Carlos na Bahia, e com ele estabeleceu casamento que ultrapassou as convicções musicais. Os dois tiveram três filhos e vários sucessos nas rádios do Brasil e do mundo, principalmente depois que migraram para o Rio de Janeiro. O primeiro grande êxito foi “Você abusou”, que Antônio Carlos compôs com Jocafi em 1971. O canto de Maria Creuza explicitava a beleza da composição que se esvairia de aspirações intelectuais. Ia direto ao coração.



Dom de iludir

Caetano Veloso se traveste de mulher para responder ao samba lamentoso de Noel Rosa. É a mulher que se defende das acusações do homem e apela à ele para que a deixe em paz, não mais a olhe, não a procure, não fale com ela. Maria Creuza cantou verso por verso da canção em 1976, com a habitual categoria.

Eu sei que vou te amar

Vinicius de Moraes foi apresentado a Maria Creuza em 1969, e a convidou para cantar com ele e Dori Caymmi no Uruguai. O Poetinha logo sem embeveceu pelos dotes musicais da cantora e passou a excursionar com ela e o compositor Toquinho por vários países europeus, onde os aplausos eram a tônica dos espetáculos. Dentre as muitas canções que Creuza gravou de Vinicius uma das mais belas foi “Eu sei que vou te amar”, parceria com Tom Jobim de 1959 que ganhou essa nova leitura em 1972, com o poeta recitando os versos em relevo de “Soneto de Fidelidade”. Uma preciosidade.



Onde anda você

Vinicius de Moraes e Hermano Silva procuravam em 1976 a moça que os deixara louco de tanto prazer. Até que encontraram em Maria Creuza a cantora exata para interpretar os versos, com a dose certa de leveza e emotividade.

Pouco importa

Maria Creuza sussurra a poesia derramada do samba-canção “Pouco importa”, do mestre da Mangueira, Cartola. Após a indiferença dos primeiros versos, vem a consagração erguida de um coração que superou ferimentos mesquinhos: “O ciúme e o desprezo são armas de dois gumes, quanto mais se degladiam, aumentam os queixumes, felizmente eu sou dotada de resignação, para não ferir meu coração”. Com o encerramento de um maravilhoso solo de saxofone.

Otália da Bahia

Uma música que não cita em nenhum momento o título. Essa foi a peripécia de Antônio Carlos e Jocafi ao comporem em 1976 a levada “Otália da Bahia”, com os irresistíveis versos “moça não merece medo, o amor quando não passa não merece medo, uma briga de pirraça não merece medo...” cantados por Maria Creuza.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 27/02/2011.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011




Miltinho é a voz do poema das mãos, da lágrima, da menina moça e da mulher de trinta. A voz que conta as estrelas do céu, as fases da lua e as gotas de água do mar. Na voz de Miltinho, o mundo ganha novas medidas, deixando um cheiro de saudade a cada instante.

“Nas minhas mãos a despedida
Nas tuas mãos a minha vida”


Miltinho divide os sambas com a destreza de quem esculpe uma pedra. Sambando com elegância por entre as notas. Juntando corações numa única batida de frases.



Mulher de trinta

Um dos primeiros sucessos da carreira de Miltinho foi o samba-bossa “Mulher de trinta”, que ele cantou em 1960 depois de passar pelos conjuntos vocais Cancioneiros do Luar, Namorados da Lua e Quatro Ases e um Coringa, como cantor e pandeirista. A música de Luís Antônio era um convite feito para uma mulher que já passou por muitas experiências, com a promessa de que ainda existem trilhas a serem percorridas, quem sabe ao lado do cantor da canção.

Menina moça

No mesmo ano que cantou “Mulher de trinta”, Miltinho lançou outro sucesso de Luís Antônio, com título que era justamente o oposto da outra música. “Menina moça” é um samba-bossa que reflete a beleza “mais menina que mulher” em comparações com a flor, o sol, a lua e o mar. O tempo é o grande tema da música de Luís Antônio.



Palhaçada

Miltinho é, sem dúvida, o grande intérprete de “Palhaçada”, samba de Luiz Reis e Haroldo Barbosa lançado em 1961. Sua voz anasalada e metálica cai como uma luva para vestir os trejeitos do homem que compreende as necessidades de sua amada e se submete a vestir-se tal qual o grande artista do circo: “cara de palhaço, roupa de palhaço, até o fim”.

Meu nome é ninguém

Outra grande canção da parceria Haroldo Barbosa e Luiz Reis gravada por Miltinho foi o samba “Meu nome é ninguém”, lançado pelo cantor em 1962. “Foi assim, a lâmpada apagou, a vista escureceu, um beijo então se deu”. Os sintomáticos versos iniciais da canção prenunciam o clima romântico e de conquista, mas surpreende por seu gran finale trágico, encerrando o caso sem mais delongas: “meu nome é ninguém, e o seu nome também...ninguém.”



Poema do olhar

Evaldo Gouveia e Jair Amorim deram a Miltinho uma das mais bonitas músicas de seu repertório. O samba-canção “Poema do olhar”, interpretado pelo cantor em 1962, contorna os simbolismos de uma relação baseada na entrega tão imensa que possibilita enxergar a si nos olhos da amada. Até que ela resolve fechar os olhos e não mais receber essa luz.

Lembranças

Miltinho se envolve com as “Lembranças” de um triste Raul Sampaio ao entoar a parceria do compositor capixaba com Benil Santos, lançada em 1962. “Lembro um olhar, lembro um lugar, teu vulto amado, lembro um sorriso e o paraíso, que tive ao teu lado.”



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 20/02/2011.




O coração explosivo fulminou o homem-bomba. A última letra do primeiro nome, embora muda, já prenunciava o início musical do instrumento que ele iria tocar. Hoje ainda se fala no seu bandolim. Assanhado, diabinho maluco, bole-bole, doce de coco. Ainda se ouve suas vibrações, sua alvorada e a ginga do Mané. “Jacob toca Jacob, os outros tocam bandolim”. Disse Radamés Gnatalli sobre aquele que dominou o choro e não conteve as lágrimas e emoções, despejou tudo nas cordas de um pequeno pedaço de madeira que ele abraçou com coração pronto a explodir em notas e melodias. Discípulo de Ernesto Nazareth e Pixinguinha, Jacob do Bandolim é, segundo o coro de entendedores do gênero como Sérgio Cabral e Henrique Cazes, “o maior instrumentista que o Brasil já teve.” Um mestre.



Noites cariocas

“Noites cariocas” foi gravado por Jacob do Bandolim em maio de 1957, com o regional que o acompanhava na época, o de Canhoto. Apesar da excelência com que desenvolvia suas composições, o bandolinista ainda não vivia sua época de ouro, e acabou criando um certo rancor por Waldir Azevedo, que ocupou seu lugar na Continental e obteve grande sucesso de público e crítica. Três anos depois, Jacob regravaria o choro com o acréscimo do trombone do Maestro Nelsinho. “Noites cariocas”, com seu estilo levado que remete bem ao samba, ganhou letra de Hermínio Bello de Carvalho, gravações de Ademilde Fonseca, Áurea Martins, e outras, e se tornou o maior sucesso da carreira de Jacob do Bandolim.



Doce de coco

O “Doce de coco” do choro de Jacob do Bandolim é o nome carinhoso pelo qual o personagem da história chama sua amada. Nos versos escritos por Hermínio Bello de Carvalho em 1980, ele implora, pede, se humilha para que ela repense o amor dos dois. Esse amor tão gostoso e irresistível que merece ser chamado de doce de coco foi gravado por Ney Matogrosso e Elizeth Cardoso.

A Ginga do Mané

Jacob do Bandolim era vascaíno e compôs para o clube do coração um choro com esse mesmo nome, no qual imitava o som de uma guitarra portuguesa. Por não tão incrível que pareça, dada a personalidade controversa e interessante do instrumentista, ele compôs com igual maestria uma música para um ídolo do time rival: Mané Garrincha, o anjo das pernas tortas que chamava os marcadores de João. “A Ginga do Mané”, de 1952, é choro do menino que começou tocando violino e acabou instaurando toda uma nova história do bandolim no Brasil.



Vibrações

Em 1964, Jacob do Bandolim criaria o conjunto de choro que permaneceria para sempre na história: o Época de Ouro. Com a adesão de César Faria, pai de Paulinho da Viola e seu grande amigo, no violão de 6 cordas, Carlinhos Leite no outro violão, Dino no violão 7 cordas, Jonas no cavaquinho e Gilberto D’Ávila no pandeiro. Conjunto formado, Jacob realizou seus dois trabalhos de maior impacto: primeiro gravou “Suíte Retratos”, homenagem aos precursores da música brasileira como Pixinguinha, Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e Anacleto de Medeiros que Radamés Gnatalli dedicou a ele. O segundo, o álbum mais aclamado de sua discografia e dono de rara hegemonia entre críticos e público: Vibrações, de 1967, que trazia entre outras, a faixa-título, uma preciosidade!

De Sérgio Bittencourt para Jacob do Bandolim: Naquela Mesa

“De Sérgio Bittencourt para Jacob do Bandolim”, assim Elizeth Cardoso anuncia a homenagem emocionada do filho jornalista e compositor para o pai bandolinista. Regravada diversas vezes por grandes nomes do quilate de Nelson Gonçalves e incorporada ao repertório informal dos seresteiros, “Naquela Mesa” tornou-se clássico da canção brasileira em reverência àquele que além de músico, dedicou-se a pesquisar o choro, e transformou-se em salutar referência do gênero. À Jacob do Bandolim, “Naquela Mesa”!



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 20/02/2011.

domingo, 13 de fevereiro de 2011




Cauby Peixoto veste as músicas que canta com a grandeza de sua voz. De pérolas, brilhantes e cristais. Tal qual um estilista da canção, ele recheia de jazz e suingue próprio os ritmos mais brasileiros. Cauby desenha palavras adornando o límpido de sua voz, que ele apresenta no palco sob cortina exuberante. A cortina é sua figura, sua presença tão sobressaída quanto o motivo dos gritos da platéia: a voz de um cantor da geração de ouro do rádio brasileiro que segue abrasadora em tempos indistintos.



Conceição

É impossível não ligar “Conceição” ao nome de Cauby Peixoto. Ela é resultado da inspiração de dois compositores para tratarem o tema e do poder que um intérprete pode exercer sobre a música. Se não é possível afirmar que todos sabem o nome dos autores Jair Amorim e Dunga, é provável apostar que Cauby tornou-se mais dono da canção que quem a germinou. Isso porque a verdadeira germinação popular deu-se quando ela atravessou sua voz extensa. Não à toa Cauby cantando “Conceição” tornou-se um verdadeiro espetáculo à parte. Com direito a todas as pompas que o cantor sempre adorou.



Começaria tudo outra vez

Ao som de bolero, samba, baião ou toada. Assim Gonzaguinha escreveu seu nome na canção brasileira. Um nome que já tinha peso antes mesmo dele nascer, e que foi aos poucos penetrando nos ouvidos das pessoas com aquele diminutivo. O menino esguio que falava de dramas, amores e problemas sociais, cresceu. Gonzaguinha no palco era solto, espontâneo, como se estivesse em casa, mas ao escrever era incisivo, agudo, dando a medida que lhe cabia da força dos relacionamentos humanos em sua vida. Não imaginava ele que em 1976, só estava no começo, mas ainda assim decidia: “Começaria tudo outra vez, se preciso fosse, meu amor...”, nas vozes marcantes de Cauby Peixoto e Ângela Maria, um bolero inesquecível.

Bastidores

Chico Buarque escreveu para Cauby Peixoto uma das pérolas mais elegantes de seu repertório. “Bastidores” visualiza o veludo da voz de Cauby quando ele retornava à mídia depois de um tempo afastado, em que seu estilo foi considerado ultrapassado. Em 1980 não apenas Chico, mas vários compositores da música brasileira que surgia como Caetano Veloso, Eduardo Dussek e Joanna dedicaram canções ao ídolo de gerações. “Bastidores” é o carro-chefe que transporta a espetacular voz de Cauby Peixoto com todas as suas jóias.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 13/02/2011.




Carmen Miranda não era brasileira, nem portuguesa, nem chegou a ficar americanizada. Sua personalidade musical não tolerava restrições de gênero, território ou critérios absolutos. Carmen Miranda é hoje, como sempre foi, uma identidade universal da boa música: embora ela cante em bom português falado brasileiramente, mesmo quando o idioma é estrangeiro, na voz de Carmen soa língua mãe.

“No tabuleiro da baiana”, composto por Ary Barroso em 1936, é um samba-batuque que traz em seu cardápio musical suingue e malemolência, em versos que soam tão deliciosos quanto os ingredientes do tabuleiro. Misturando elementos típicos da cultura baiana ao amor e ao samba e tornando-os definitivamente parte da mesma receita, Ary Barroso criou um dos mais famosos pratos da culinária musical brasileira, que Carmen cantou com graça coloquial: “No tabuleiro da baiana tem...”



Camisa listrada

Outra camisa presente nas passarelas de rua do carnaval foi a listrada de Assis Valente. Nela é possível perceber o desespero da mulher que vê o seu homem desfilar na avenida vestindo suas roupas, sua saia e sua combinação. A música é uma combinação entre alegria e tristeza, e mostra de forma debochada e simples o contraste entre a fantasia do homem que sai para se divertir e a preocupação da mulher que assiste àquilo com ares de repreensão. A música retrata o descompasso do amor entre a mulher que sofre em vão e o homem que vai à folia do carnaval. É um apelo que a mulher faz para que seu homem não se fantasie.



Na Baixa do Sapateiro

A Bahia foi o grande amor paisagístico de Ary Barroso. Por ela se embeveceu ao excursionar com orquestra da qual participava em 1929. E a cidade nunca mais saiu do seu pensamento, recebendo várias homenagens emocionadas. A mais famosa delas é “Na baixa do Sapateiro”, segunda música mais gravada da lavra de Ary Barroso, perdendo somente para a patrimonial “Aquarela do Brasil”. O título é inspirado no nome popular de uma rua de Salvador, e serviu de mote para que Ary pudesse suspirar um encontro afetuoso entre ele e uma morena frajola. Com início retumbante e desenrolar mais ameno, a música chamou a atenção novamente dos produtores americanos, e foi incluída em mais um filme de Walt Disney, “Você já foi à Bahia?”, com título modificado para o nome do local citado. Todo o encantamento em torno da música rendeu a Ary Barroso novos convites para trabalhar nos Estados Unidos, em sintonia com Carmen Miranda, que a lançou. Os planos não deram certo, desentendimentos e desencontros certificaram para Ary Barroso que ele pertencia mesmo à Bahia, ao Brasil.



Disseram que eu voltei americanizada

Em 1940, após um longo período sem se apresentar no Brasil, a portuguesa Carmen Miranda voltou à terra que a acolheu e foi recebida no aeroporto por uma multidão de fãs. No entanto, ao se apresentar a grã-finos no Cassino da Urca acabou tendo uma recepção fria por cantar algumas músicas em inglês. Acusada de ter ficado “americanizada” pelo tempo que passou nos Estados Unidos, Carmen gravou no mesmo ano o samba “Disseram que eu voltei americanizada”, de Luís Peixoto e Vicente Paiva, no qual era enfática: “enquanto houver Brasil na hora da comida, eu sou do camarão ensopadinho com chuchu!”, dando mais um exemplo da importância cultural da nossa rica culinária e de todo seu apreço por ela.



Na batucada da vida

“Na batucada da vida”, mais um dentre os muitos sucessos de Ary Barroso, é o depoimento da mulher que passa pelo amor e pelo sofrimento, pelo silêncio e pela batucada, e que no fim só quer ser ouvida. Apela a quem puder ouvir que a ouça, pois ela seguirá sempre cantando, na orgia e na pancadaria, bebendo cachaça e passando por batismos de fumaça, desprezada e quem sabe até um dia, amada. “Na batucada da vida” é a mulher falando, cantando, pedindo que lhe dêem ouvidos, pois ela seguirá em frente, independente de qual seja seu destino. É um apelo à vida!



Tico – Tico no Fubá

“Tico – Tico no Fubá”, um dos choros mais regravados de todos os tempos, tanto no Brasil quanto no exterior, é uma obra prima de Zequinha de Abreu composta em 1931. Em ritmo que faz lembrar o alvoroço dos pássaros em meio aos farelos do fubá, a música ganhou mais tarde duas letras diferentes, uma de Eurico Barreiros, lançada por Ademilde Fonseca, e outra de Aloísio de Oliveira, lançada por Carmen Miranda. Apesar disso, ambas conversam sobre o mesma tema, em tom de diálogo as cantoras pedem ajuda para salvar o seu precioso fubá dos famintos passarinhos. É um tico – tico no fubá que dá vontade de comer e dançar ao mesmo tempo!

Aurora

Antes de Amélia, houve na vida de Mário Lago uma outra mulher. Sorte que ela não fosse sincera, pois inspirou-lhe belas alfinetadas na sabida moça. Carmen Miranda alçou ao sucesso as qualidades de Aurora, que foi pela primeira vez cantada pela dupla Joel e Gaúcho. No carnaval de 1941, a marchinha de Roberto Roberti e Mário Lago alcançou glórias em terras brasileiras, inglesas e americanas, tornando-se inclusive, tema de filme estrangeiro.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 13/02/2011.




O mineiro Hervé Cordovil transitou pelos mais variados gêneros com a mesma eficácia, para dizer pouco. Isso porque o pianista, regente e compositor desencorajado por Eduardo Souto, diretor da Casa Edison, no início de carreira, escreveu parcerias com Noel Rosa, Lamartine Babo e Luiz Gonzaga, para citar alguns. E foi ele o compositor sozinho de sucesso de Dick Farney, “Uma Loura”, e da Jovem Guarda, “Rua Augusta”. Nascido em Viçosa, Hervé conquistou quietinho o reconhecimento, e sem fazer barulho, apenas som de primeira.



Pé de manacá

“Pé de manacá” foi composto por Hervé Cordovil em parceria com sua prima Mariza Pinto Coelho e alcançou sucesso em 1950, na interpretação de Isaurinha Garcia. O baião inocente revela a essência pura e simples do amor, enfeitado por versos de rara simplicidade.

Sabiá lá na gaiola

Quem não carrega consigo em sua memória afetiva os versos chorosos da menina que perdeu o passarinho e o espera voltar. É o sabiá lá na gaiola de Hervé Cordovil que nos faz reviver momentos de alegria e tranqüilidade. A parceria com Mário Vieira de 1946 virou sucesso 4 anos depois, na gravação de Carmélia Alves.



Uma loura

Dick Farney pergunta “quem não teve uma loura” com seu charme grave e sua elegância. A música composta por Hervé Cordovil em 1951 ganha em sensualidade ao receber os ares de Dick Farney, que canta como se cantasse a loura.

A vida do viajante

Um dos prefixos adotados pelo Rei do Baião, Luiz Gonzaga, foi cunhado por seu parceiro Hervé Cordovil, que compôs com ele “A vida do viajante”. Luiz Gonzaga levou na bagagem versos de afinada sintonia e inspiração com sua pessoa de artista: “minha vida é andar por esse país...”



Triste cuíca

A tristeza aguda da cuíca que geme feito um boi é a tônica do samba de 1934 composto por Hervé Cordovil e pelo genial Noel Rosa. O clima tenebroso se acentua quando revela-se os contornos de uma relação onde o ciúme encobre o amor. Laurindo e Zizica são os personagens de um romance com final triste.

Rua Augusta

“O primeiro hino do rock brasileiro”, segundo Erasmo Carlos e Tony Campelo, Rua Augusta foi composta por Hervé Cordovil quando ele tinha 50 anos, em 1964. Ao ingressar no ritmo da Jovem Guarda, Hervé comprovou mais uma vez seu talento como compositor em várias áreas. Lançada por seu filho, Ronnie Cord, a música teve versos censurados pela ditadura, mas mesmo assim alcançou amplo sucesso.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 13/02/2011.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011




O bom compositor não se faz pelo nome, mas pelo conteúdo. Pedro Caetano nunca foi compositor, pelo menos era isso o que a formalidade lhe falava, pois manteve seu lar com o dinheiro dos calçados e vestidos que vendia por toda a vida, só aparecendo de corpo e cara para gravar um disco próprio aos 64 anos. Mas a essa altura suas músicas já eram cantadas por muitos outros, populares e profissionais, sempre com popularidade e qualidade elevadas. Ciro Monteiro, Orlando Silva, Sílvio Caldas colocaram na boca suas músicas. Noel Rosa, Pixinguinha, Claudionor Cruz, apertaram com instrumento e lápis suas composições. Era o conteúdo que fazia de Pedro Caetano compositor, e dos bons, hoje aos 100 anos comemorados na última terça-feira.



Caprichos do destino

O primeiro sucesso de Pedro Caetano foi a valsa “Caprichos do destino”, lançada por Orlando Silva em seu auge, no ano de 1938. A valsa em parceria com Claudionor Cruz conta a história de um homem que se vê desenganado pelo destino tortuoso que lhe coube, e pensa em desistir.

Botões de Laranjeira

Maria Madalena dos anzóis Pereira só não existiu porque o seu nome era na verdade Maria Madalena de Assunção Pereira, mas a censura obrigou o compositor Pedro Caetano, por sugestão do radialista César Ladeira, a trocar o nome da menina que o pediu que fizesse a música. Para preservar a privacidade das pessoas, nomes próprios por extenso eram proibidos. E assim nasceu a canção lançada por Ciro Monteiro no ano de 1942, em ritmo de samba-choro.



O que se leva dessa vida

Ciro Monteiro tornou célebre outra composição de Pedro Caetano, o samba “O que se leva dessa vida”, lançado por ele em 1946 com acompanhamento do regional de Benedito Lacerda e do clarinetista Caximbinho. A música tornou-se um dos standarts da carreira de Ciro e imortalizou os versos leves e nobres da composição bem humorada de Pedro Caetano sobre as possíveis asperezas da vida.

Onde estão os tamborins?

O sumiço do sambista Cartola, fundador da Estação Primeira de Mangueira, deixou a escola quieta e sem o brilho verde e rosa que costumava ofuscar as outras. Foi essa fase pouco inspirada que levou o compositor Pedro Caetano a reclamar publicamente, em forma de samba lançado no carnaval de 1947 pelo conjunto vocal Quatro Ases e um Coringa, com grande sucesso de público que cantou na avenida: “Mangueira, onde é que estão os tamborins, ô nêga?”



É com esse que eu vou

“É com esse que eu vou” conclama o espírito carnavalesco a pisar na avenida sem menores distinções de raça ou classe. O importante é ir no embalo do samba que alegra o carnaval brasileiro. Uma festa que começou no caderninho de Pedro Caetano durante uma viagem de trem de Vitória para Belo Horizonte, passou pelas vozes dos Quatro Ases e um Coringa e chegou até Elis Regina, regravando-a 25 anos depois de lançada em 1948.



Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 06/02/2011.

sábado, 5 de fevereiro de 2011



Lúcio Alves



Multidão de dores e alegrias:

Lúcio Alves, a voz das brumas, das manias, da solidão e da amargura. A voz de um sábado ensolarado em Copacabana. Desde os 14 anos sua voz já embalava os corações apaixonados dos “Namorados da lua”. Uma voz grave que parecia sair das narinas e perfumava os ares cheios de dor e vida. Uma voz grave que cantava os dramas do samba-canção e as saudações otimistas da bossa nova que nascia. Uma voz grave, porém terna e macia. Para o “cantor das multidinhas” a canção será sempre imensa, e o amor uma multidão de dores e alegrias.



Herivelto Martins



O carioca Herivelto Martins compôs clássicos da canção brasileira ao longo de frutífera carreira que também incluiu as atividades de violonista e cantor do “Trio de Ouro” em todas as suas formações, tendo sido ele o principal idealizador e entusiasta do conjunto. A briga espalhada através de jornais e músicas com Dalva de Oliveira rendeu-lhe a pecha de arrogante, mal humorado e machista, mas mais do que isso, rendeu pérolas do quilate do nome que acompanhava o trio no qual cantou por mais de cinco décadas, até o último ano de sua vida.

Cabelos brancos (1949, samba) – Herivelto Martins e Marino Pinto

Os conflitos amorosos entre Dalva de Oliveira e Herivelto Martins deram início a uma briga pública e músicas que se tornaram eternas no cancioneiro brasileiro. Entre elas, “Cabelos brancos”, de 1949, gravada pelo conjunto cearense “Quatro Ases e um Coringa”. O grupo formado pelos irmãos Evenor, José e Permínio Pontes de Medeiros, e ainda André Batista Vieira e Pijuca fez sucesso no final da década de 40 ao lançar o rancoroso samba de Herivelto.



Praça Onze (samba de carnaval, 1942) – Herivelto Martins e Grande Otelo

Em 1941, quando ficou sabendo da intenção da prefeitura de demolir a Praça Onze, abrigo dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, Grande Otelo indignou-se e escreveu versos românticos e tristonhos sobre o fato. Então levou a letra para músicos como Wilson Batista, Max Bulhões e Herivelto Martins, a fim de que a musicassem. Nenhum deles se interessou muito, mas o azar de Herivelto era que ele o via todo dia, pois os dois trocavam-se juntos no Cassino da Urca. Herivelto dizia que não cabia samba naquela letra, pois o que Otelo tinha escrito era um romance, com versos do quilate de “Oh Praça Onze, tu vais desaparecer”. Eis que devido à insistência diária do noviço compositor, Herivelto irritou-se e começou a cantar de improviso versos sambados, dizendo para o humorista: “O que você quer dizer é isso: vão acabar com a Praça Onze, não vai haver mais escola de samba, não vai...”, Otelo empolgou-se e começou a escrever ali mesmo os outros versos da canção, enquanto Herivelto tocava a melodia no violão. Quando ficou pronta, a música foi gravada pelo Trio de Ouro com a companhia de Castro Barbosa, e trouxe na execução uma novidade inventada por Herivelto e que fez grande sucesso entre os foliões, o uso do apito para dar ritmo. Todos que sentiam a perda da Praça cantaram e dançaram na avenida a música que dividiu o prêmio de melhor samba do ano de 1942 ao lado da clássica “Ai que saudades da Amélia”, de Ataulfo Alves e Mário Lago. Grande Otelo ria como fazia rir, apesar da tristeza pela perda da praça, ele conseguiu o que queria.

Raphael Vidigal Aroeira

Lido na Rádio Itatiaia dia 30/01/2011.

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